terça-feira, março 13, 2007

Ois

Olá meninos. Yap, ainda estou sem computador. Tenho mesmo de comprar um, irra. Bom, ´tou na biblioteca e daqui a pouco vou para o job. Ainda estamos em formação, por isso não quero dizer onde é que eu estou exactamente. Talvez na próxima semana assinemos o contrato (eu digo Talvez porque só acredito nas coisas quando elas são definitivas, concretas!). Nos entretantos deixo aqui dois contos (quase contos) que desentranhei de um livro que escrevi no fim de 2005. Uma parte do livro vai ser reaproveitada - a outra não. Portantos ficam aqui com muito material para ler.
[Por imperativos de tempo o outro fica para outra altura.]
Ah, para terem uma ideia daquilo que eu faço (apoio ao cliente) fica um textozinho. Não posso nomear a empresa porque se começo a gozar muito com a dita (e a revelar os processos de atendimento) - acho que me põem na rua.

SAL E PIMENTA

Cliente: Ora, boa tarde, boa tarde. É para dizer que eu pa, paguei a taxa e ainda não vieram cá pôr a pimenta no cu da avó!
Operadora: Senhor Armando, temos efectivamente uma ordem de serviço para ir pôr pimenta no cu da avó, já saiu para a rua, mas o período em que pode ser feito é até amanhã às 15 horas.
Cliente: Então e eu agora! E eu agora vou lamber aquilo sem pimenta?! É que só com sal não tem jeito nenhum! Eu paguei, eu já paguei!

[Tivesses pago mais cedo. Totó.]

Op: Senhor Armando, é como eu acabei de o informar. A ordem de serviço está na rua, é questão apenas de aguardar por um contacto de um técnico nosso.
Cliente: Mas hoje? Vêm cá pôr pimenta no cu da avó hoje?! É que só com sal, só com sal não tem jeito nenhum!
Op: O prazo é até amanhã às 15 horas.
Clt: Mas tem de ser hoje, caneco! Tem de ser hoje! Eu não saio...!
Op: Senhor Armando...
Clt: Eu Não Saio Daqui Até Me Garantirem que vêm Hoje, Sem Falta, pôr cá, pôr cá a pimenta no cu da avó! Como é que eu vou lamber aquilo só com sal?! Tem de amaciar, a senhora sabe isso, também tem avó, não é? Compreende, não é?
Op: Senhor Armando...

[And on and on and on]

*******

MIRIAM


Miriam está dentro do sonho de Filipe. Entre pegar no telefone para falar com ele e comunicar doutro modo, preferiu rasgar um pouco o tecido da realidade, rasgá-lo, não penetrar nele, e confrontá-lo. Nunca tinha entrado nos seus sonhos antes por vergonha e medo de o intimidar e também por lhe respeitar a privacidade. Mas amantes honestos costumam visitar-se, e amar-se, em sonhos. Porém a honestidade entre os dois fora trocada por outra coisa que ela não sabia definir.
- Chamei-te - diz Miriam à figura enevoada sentada em cima de uma cama de ferro negro. Tem cobertas brancas que contrastam com o ferro retorcido em círculos simétricos. Filipe dissolve-se, é névoa difícil de apanhar, de conter em redor das mãos, de abraçar. Miriam tem medo de se aproximar muito, pode dispersar as moléculas para longe. E depois, como falará com ele? Não se pode falar com o espaço vazio, mas também não se dialoga com a névoa.
- Chamei-te. Não vieste.
- Ir onde? - responde, tornando-se mais sólido. Distinguem-se os olhos e pouco a pouco o nariz e os lábios cheios reaparecem.
- Ter comigo - diz, sentando-se ao lado, na cama, e virando o rosto na sua direcção. Com cuidado não o tocou. Temia que se quebrasse como um espelho e despertasse do sonho na sua cama.
Filipe olha para longe, subitamente esquecido de Miriam. Ela estreita os olhos. Ao fundo há dois berlindes de cor florescente a brilhar, um azul, outro verde. Filipe desliza no chão como um gato na direcção das jóias. Estas parecem afastar-se cada vez para mais longe, a cada passo que dá. Filipe gatinha com pressa, aumenta o ritmo, mas as jóias afastam-se para além do horizonte sem sol.
Miriam está na cama a reprimir as lágrimas (sim, também se chora nos sonhos. No momento, na realidade, Miriam está na posição fetal e o Gato cheira-lhe a cara e avança os bigodes para ela, preocupado. Põe uma pata dentro da testa e entra para o sonho). Levanta-se. Baixa-se para Filipe. Pega no seu rosto apático, diz Amo-te, e beija-o. De início não se apercebe de nada, mas a seguir a apatia levanta como um manto de nuvens a ameaçar tempestade e ele retribui com paixão. Quando se separam ele sorri, reconhece-a, Miriam, diz, Miriam.
O Gato roça-se nela, de cauda alçada, e faz pffff para ele. Não gosta de Filipe. Filipe estende a mão lentamente para o felino, com a intenção de lhe fazer uma festa, mas é repelido com uma sapatada. Au!, diz ele, arranhou-me.
- Mau! Feio! - diz Miriam.
- Para que perdes o tempo com este tipo? - diz o Gato. - Não gosto dele. Não serve para ti.
- Alguém te pediu a opinião?
- Ele fala? - diz Filipe aparvalhado.
- Pois claro que falo. Bípede idiota... - sibila o Gato, limpando a cara com a pata de costas para ele.
- Ele fala? Mas fala?
- Filipe, olha para mim.
- Devo estar a sonhar!
- Por acaso...
- Um gato que fala...
- Larga-o - diz ele a Miriam. - Não tens tempo para te dedicar a idiotas deste calibre.
- Chiu. Cala-te - vocifera num murmúrio.
- Tempo? - diz Filipe.
- Não lhe disseste! - exclama o Gato surpreso.
- Cala-te - diz Miriam entredentes, num tom ameaçador, de olhos arregalados. Faz um gesto de mão e o Gato voa para longe aos rodilhões, como as ervas secas dos desertos americanos.
- Miiiaaauuuu... - diz ele, magoado no seu felino orgulho.
Tem sempre a mania de se meter onde não é chamado, espuma Miriam, quer saber tudo, mas se lhe peço para me contar a mínima coisa, é o contas! Coscuvilheiro de um raio. Amanhã dorme no olho da rua e que se amanhe com os zombies. Quero lá saber.
Procura Filipe, mas ele afastou-se. Está de pé a observar as duas jóias, ao nível do seu peito, quase pode tocar-lhes, mas elas afastam-se só um pouco, fica a milímetros de lhes roçar os dedos. Aquele espaço mínimo irrita-o.
- Filipe... - chama Miriam do seu lado. Ele ignora-a. Nem a vê. De repente, num salto, o Gato reaparece, pula sobre as jóias e aterra de barriga colada ao chão. Filipe assusta-se, salta para trás, põe um joelho no solo, diz bichano, bichano, deixa ver, deixa... O Gato ronrona de forma ameaçadora e levanta-se deixando nada a descoberto. Permite que Filipe vasculhe no meio do pêlo, como se tivesse sido sedado para uma visita ao veterinário, sem nada descobrir. Antes de o largar o Gato revela:
- A Miriam vai morrer.
Ele arregala os olhos, volta-se, rápido e nervoso, para ela. Miriam está pálida, de olhos esbugalhados. De súbito ele acorda a chorar e mergulhado em suor na sua cama vazia. Agarra no telefone e repara nas horas: 3h12, não pode telefonar a Miriam àquelas horas.
Levanta-se, molha a cara, anda pela casa (não repara que os móveis o espreitam pelo canto dos olhos) e cai em si - era um sonho, o estúpido de um sonho. Mas, realiza, então porque o terá afectado tanto? Porque o terá deixado naquela desalmada condição? A realização do porquê limpa-lhe a mente de pensamentos.
Miriam está fodida com o filhodaputa do Gato. Ala, Ala!, ralha ela, enxotando-o da cama quente e acolhedora, Lá para fora! Andor! ANDOR!, grita enfurecida. Mas Miriam, mia ele, fazendo a sua cara mais triste, apelando à compaixão da bípede, lá fora está muito frio! Eu morro com o frio! Havia de ser o dia, diz ela com escárnio, em que me saísse a sorte grande. Ala para fora, caneco! Miriam, por favor, implora o Gato; Rua!, diz enxotando-o para o exterior da casa.
E agora, o que dizer a Filipe? Ele podia continuar cego, surdo e mudo quanto à magia que o mudo encerrava, mas por vezes ela duvidava, por vezes parecia que ele tentava desesperadamente ignorar ou fazer de conta que não via o que já via. Talvez ignorasse este sonho. Talvez. Em todo o caso, se lhe perguntasse, ela mentiria.
*

Ela abraça-o por muito tempo, de olhos fechados. Há qualquer coisa que o anda a incomodar, mas não sabe o quê, e esse gesto, esse indelével abraço lembra-lhe o sonho, o pesadelo que tinha tido há uma semana. Estranho. Ele não se lembrava dos sonhos, não era costume e muito menos com uma semana de atraso.
Miriam, disse; Sim, respondeu. Tive um sonho esquisito!, disse ele, galhofeiro, de braço apoiado no chão e a outra mão a tocar suavemente o estômago dela. Hum, disse ela. Ela dizia ¨Hum¨ quando não queria falar das coisas. A pulga instalou-se atrás da orelha.
- Estranho como?
- Estranho... sei lá. O teu gato falava.
- O meu gato?
- Sim. Havia qualquer coisa que me distraía, não recordo o quê. Tentei, não sou capaz. Mas lembro-me vividamente que o teu gato falava. E comeu qualquer coisa. Acho que comeu. O teu gato não fala, pois não? - perguntou, brincalhão.
- Ora pois! Era logo! - disse ela a rir-se. Súbito ficou com o rosto sério. Ele perguntou, preocupado:
- O que foi?
- Estás a aleijar-me.
- Desculpa - e deslizou para o lado. Após um momento de silêncio disse:
- Disse-me que ias morrer.
Miriam estreitou as sobrancelhas.
- Quem?
- O gato.
- O gato - riu-se.
- Tu ficaste muito zangada. Depois acordei. Lembro-me que antes de despertar te vi no sonho a olhar para ele zangada.
- Eu também lá estava, então.
- Sim.
- E havia mais alguém?
- Não. Apenas eu, tu e o teu gato. Miriam... - e baixou o rosto - não estás doente, pois não?
Ela virou-se para o lado e começou a rir, o corpo dando minúsculos saltos.
- Que parvoíce. Que raio de pergunta. Agora acreditas em sonhos?
- Não, mas... não sei, aquele... não há nada de errado, pois não?
- Está tudo óptimo - respondeu sorrindo sem mostrar os dentes.
- Ainda bem - pousou-lhe a mão na face. - O teu gato, onde anda?
- Ó, por aí, às gatas, a caçar ou a brincar. Não é muito caseiro.

Amaram-se muitas horas seguidas. Filipe estava mais gentil do que nunca. Não lhe diria nunca. Estava a ser egoísta, sabia-o, mas aqueles momentos de amor eram-lhe preciosos, queria beber cada um deles como se bebesse da fonte da eterna juventude. Não era justo que ele, um dia, chegasse e chegasse apenas para o seu funeral, mas não era capaz de contar-lhe. Queria todo o seu amor antes de ir, não queria a sua mágoa, as lágrimas, o afastamento.