domingo, setembro 19, 2004

«Sim. Olhe, eu não sei quem o homem era, mas pelo que percebi era uma pessoa muito difícil. Ela diz que gostava da cara dele, das mãos e da maneira de falar, e pensou que era divertido fazer com que ele a cortejasse – porque ele tinha um ar todo intelectual, sabe, e é sempre um espectáculo ver um indivíduo assim, requintado, distante, inteligente, pôr-se de repente de gatas e a dar ao rabo. Mas o que é que se passa, cher Monsieur
«O que é que a senhora está para aí a dizer?», quase gritei. «Quando ... Quando e onde é que isso aconteceu, esse caso?»
«(...) Não me dei ao trabalho de lhe perguntar nomes e datas, e se ela na altura mos disse, já os esqueci. «E agora, por favor, não me faça mais perguntas: estou-lhe a contar o que eu sei, não o que você gostaria de saber. Não me parece que esse homem fosse seu parente, porque não era nada parecido consigo – tanto quanto eu posso ajuizar, é claro, pelo que ela me disse e pelo que sei de si. Você é um rapaz simpático e impulsivo – e ele, bom, ele estava longe de ser simpático – tornou-se positivamente desagradável quando descobriu que estava a ficar apaixonado por Helene. Oh, não, ele não se transformou num cachorrinho de colo sentimental, como ela esperava. Disse-lhe amargamente que ela era reles e inútil, e depois beijou-a para ter a certeza de que ela não era uma figura de porcelana. Bom, e não era. E depois descobriu que não podia viver sem ela, e ela descobriu que já estava farta de o ouvir falar dos seus sonhos, e dos sonhos dentro dos seus sonhos, e dos sonhos dentro dos sonhos dos seus sonhos. Olhe que eu não os condeno nem a um nem a outro. Talvez tivessem os dois razão, talvez nenhum deles – mas, sabe, a minha amiga não era a mulher vulgar que ele julgava – oh, era uma pessoa muito diferente, e sabia mais acerca da vida, da morte e dos outros do que ele julgava que ela sabia. Sabe, ele era aquele tipo de homem que acha que todos os livros modernos são uma porcaria e todas as pessoas jovens e modernas, idiotas, simplesmente porque anda demasiado preocupado com as suas sensações e ideias para compreender as dos outros. Ela disse-me: não imaginas os gostos e os caprichos que ele tinha, e a maneira como ele falava de religião – devia ser uma coisa horrível. E, sabe, a minha amiga é, ou melhor, era, muito alegre, três vive, e tudo isso, mas começou a sentir que ficava velha e azeda quando o tinha ao seu lado. Porque ele nunca ficava muito tempo com ela, sabe – chegava à l’improviste e enterrava-se num pouf, com as mãos no castão da bengala, sem tirar as luvas – e ficava a olhá-la fixamente, com um ar soturno. Ela em breve começou a dar-se com um outro homem, que a idolatrava e era muito, oh, muito mais atencioso, simpático e prestável do que o homem que você erradamente julga ser o seu irmão (não se zangue, por favor), mas ela não gostava muito de nenhum e disse-me que era uma coisa de gritos ver como eles eram corteses um com o outro quando se encontravam. Ela gostava de viajar, mas sempre que encontrava um lugar realmente agradável, onde podia esquecer os seus problemas e tudo o mais, lá aparecia ele, vindo sabe-se lá de onde, e sentava-se na esplanada à mesa dela, e dizia-lhe que ela era fútil e reles, e que não podia viver sem ela. Ou então fazia um longo discurso diante dos amigos dela – sabe, des jeunes gens qui aiment à rigoler - um discurso longo e obscuro acerca da forma de um cinzeiro ou da cor do tempo – toda a gente acabava por o deixar sozinho a um canto, sorrindo tolamente para consigo ou contando as suas pulsações. Se realmente for ele o seu parente é uma pena, porque não me parece que ela tenha uma recordação particularmente agradável desse tempo. Para o fim ele tornou-se uma autêntica peste, diz a minha amiga, e ela já nem o deixava tocar-lhe, porque ele tinha uma espécie de ataques, ou lá o que era, quando se excitava. Finalmente, um dia em que ela soube que ele ia chegar no comboio da noite, pediu a um rapaz que faria tudo para lhe agradar que fosse ter com ele e lhe dissesse que ela não queria vê-lo nunca mais, e que se ele tentasse encontrar-se com ela, seria considerado pelos amigos que a acompanhavam como um estranho indesejável e tratado em conformidade. Não foi muito simpático da parte de Helene, acho eu, mas ela deve ter achado que seria melhor para ele, a longo prazo. E deu resultado. Ele nem sequer lhe mandou mais nenhuma das suas habituais cartas cheias de súplicas, que ela aliás nunca lia. Não, não, realmente, não me parece que possa ser ele o homem que lhe interessa – se lhe digo tudo isto é simplesmente para lhe dar um retrato de Helene – e não dos seus amantes. Ela era uma mulher tão cheia de vida, tão pronta a ser doce para toda a gente, tão transbordante dessa vitalité joyeuse qui est, d’ailleurs, tout à fait conforme à une philosophie innée, à un sens quasi-religieux de la vie, e o que é que ganhou com isso? Os homens de quem gostou desiludiram-na profundamente, todas as mulheres, com raríssimas excepções, acabaram por mostrar que lhe tinham rancor, e ela passou os melhores anos da sua vida a tentar ser feliz num mundo apostado em a destruir. Bom, mas você vai conhecê-la e ajuizará por si mesmo se o mundo conseguiu destruí-la ou não.»
(...) Infelizmente, já não me restavam quaisquer dúvidas, embora o retrato de Sebastian fosse atroz – mas também era verdade que me fora transmitido em segunda mão.
«Sim», disse eu, «tenho que a conhecer, custe o que custar. E isto por dois motivos. Em primeiro lugar, porque lhe quero fazer uma pergunta – uma pergunta só. E em segundo lugar...»
«Sim?», disse Madame Lecerf, sorvendo um pouco de chá frio. «Em segundo lugar?»
«Em segundo lugar, não consigo perceber como uma mulher assim pôde atrair o meu irmão; por isso quero vê-la com os meus próprios olhos.»


in A Verdadeira Vida de Sebastian Knight, de Vladimir Nabokov, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1990, tradução de Ana Luísa Faria, págs. 160-162.