quarta-feira, julho 10, 2013

FÉ, LIVROS E ABUNDÂNCIA




Quando eu era miúda sentia uma devoradora fome por livros, por letras. Não tinha acesso a eles, contudo. Só mais tarde, na adolescência, passei a ter um acesso esporádico: cada vez que a biblioteca da minha freguesia funcionava - um ou outro ano, fechando depois por razões incompreensíveis anos a fio. Em miúda o que eu lia eram ”livros aos quadradinhos” ou os “tintins” como a minha mãe os chamava (‘Não leias à mesa!’). Era assim que eu matava a minha fome por livros, como quem mata a fome com chazinho e torradas sem manteiga. O que eu sinto hoje em relação a essa falta é um género de suave ressentimento. Algo que lentamente desaparece. Sinto, porém, que essa parte da minha vida não devia ter sido assim. Eu deveria antes ter crescido numa casa cheia de livros ou ao menos perto de uma biblioteca pública, sempre aberta, à qual eu tivesse acesso. Não percebo o que era suposto eu ter aprendido com essa falta. A valorizar a palavra escrita? A respeitar os livros? A ter pena e compaixão por quem não os tem? Não faço ideia. No entanto, noto uma estranha - e cíclica - ocorrência na minha vida: seja o que for, que eu não tenha tido no decurso da minha existência, e dando-se o caso de o ter desejado imenso - mais cedo ou mais tarde isso acaba por me vir parar às mãos. E nem é às pinguitas. É às enxurradas. Mas só me vem parar às mãos, só o encontro no meio do meu caminho, depois de eu já ter transcendido esse anseio imenso, essa obsessão de Ter e Possuir. E chega-me em tanta quantidade que eu não sei o que fazer com isso.
Exemplo? Livros. Todos os livros que eu não tive na infância, tenho-os agora às catadupas, e mal tenho tempo de os ler (bom, é mais preguiça). Compro livros por dois, três, cinco euros - e vou acumulando (como os esquilos, que escondem nozes); tenho no meu e-reader Sony mais de quatrocentas obras, todas gratuitas, entre clássicos e obras que os autores disponibilizam gratuitamente. Ou seja, se eu, agora, não comprasse mais livro nenhum, nem visitasse bibliotecas, teria para ler pelo menos quatrocentas e cinquenta obras. Penso que tenho mais livros no computador que ainda não coloquei no leitor de livros electrónico. Portanto, em números redondos, à volta de quinhentos livros.
Quinhentos livros, por Deus. A fartura que eu não tive em criança, tenho-a agora em adulta e não sei o que fazer com ela. E no entanto não consigo parar. Cada vez que vejo uma obra por um preço irrisório - eu tenho de a comprar. É quase criminoso não fazê-lo.
Esta bonança talvez pare um dia.
Ou talvez não. Mesmo que termine - eu já conheço as bibliotecas todas e sei como ter acesso a elas (coisa que era território desconhecido para mim em miúda). A questão é: eu tenho Fé, absoluta Fé que vou sempre ter livros para ler até ao fim da minha vida. Talvez seja esse o truque: quando a nossa Fé (seja no que for) é inquebrantável, aquilo em que a depositamos arranja maneira de ir parar às nossas mãos. Como um presente que sabe nos ter pertencido sempre.
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Compras de hoje: “O Cão Vermelho” de Louis de Bernières (2,5€); “Não Brinque, Senhor Tanner” de Jean-Paul Dubois (3€).

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