Quando eu
era miúda sentia uma devoradora fome por livros, por letras. Não tinha acesso
a eles, contudo. Só mais tarde, na adolescência, passei a ter um acesso esporádico:
cada vez que a biblioteca da minha freguesia funcionava - um ou outro ano,
fechando depois por razões incompreensíveis anos a fio. Em miúda o que eu lia
eram ”livros aos quadradinhos” ou os “tintins” como a minha mãe os chamava (‘Não
leias à mesa!’). Era assim que eu matava a minha fome por livros, como quem
mata a fome com chazinho e torradas sem manteiga. O que eu sinto hoje em
relação a essa falta é um género de suave ressentimento. Algo que lentamente
desaparece. Sinto, porém, que essa parte da minha vida não devia ter sido
assim. Eu deveria antes ter crescido numa casa cheia de livros ou ao menos
perto de uma biblioteca pública, sempre aberta, à qual eu tivesse acesso. Não
percebo o que era suposto eu ter aprendido com essa falta. A valorizar a palavra
escrita? A respeitar os livros? A ter pena e compaixão por quem não os tem? Não
faço ideia. No entanto, noto uma estranha - e cíclica - ocorrência na minha
vida: seja o que for, que eu não tenha tido no decurso da minha existência, e
dando-se o caso de o ter desejado imenso - mais cedo ou mais tarde isso acaba
por me vir parar às mãos. E nem é às pinguitas. É às enxurradas. Mas só me vem
parar às mãos, só o encontro no meio do meu caminho, depois de eu já ter
transcendido esse anseio imenso, essa obsessão de Ter e Possuir. E chega-me em
tanta quantidade que eu não sei o que fazer com isso.
Exemplo?
Livros. Todos os livros que eu não tive na infância, tenho-os agora às
catadupas, e mal tenho tempo de os ler (bom, é mais preguiça). Compro livros
por dois, três, cinco euros - e vou acumulando (como os esquilos, que escondem
nozes); tenho no meu e-reader Sony mais de quatrocentas obras, todas gratuitas,
entre clássicos e obras que os autores disponibilizam gratuitamente. Ou seja,
se eu, agora, não comprasse mais livro nenhum, nem visitasse bibliotecas, teria
para ler pelo menos quatrocentas e cinquenta obras. Penso que tenho mais livros
no computador que ainda não coloquei no leitor de livros electrónico. Portanto,
em números redondos, à volta de quinhentos livros.
Quinhentos
livros, por Deus. A fartura que eu não tive em criança, tenho-a agora em adulta
e não sei o que fazer com ela. E no entanto não consigo parar. Cada vez que
vejo uma obra por um preço irrisório - eu tenho
de a comprar. É quase criminoso
não fazê-lo.
Esta
bonança talvez pare um dia.
Ou talvez
não. Mesmo que termine - eu já conheço as bibliotecas todas e sei como ter
acesso a elas (coisa que era território desconhecido para mim em miúda). A
questão é: eu tenho Fé, absoluta Fé que vou sempre ter livros para ler até ao
fim da minha vida. Talvez seja esse o truque: quando a nossa Fé (seja no que
for) é inquebrantável, aquilo em que a depositamos arranja maneira de ir parar
às nossas mãos. Como um presente que sabe nos ter pertencido sempre.
* * * * *
Compras de hoje: “O Cão
Vermelho” de Louis de Bernières (2,5€); “Não Brinque, Senhor Tanner” de Jean-Paul Dubois (3€).
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