segunda-feira, dezembro 20, 2004

Bom, este texto será apenas publicado no Escreva! dia 22, mas apeteceu-me pô-lo aqui antes.

(Exercício: não usar adjectivos.)





O senhor Bê na praia tem o costume de empoleirar-se em cima dos castelos de areia construídos por petizes. Por hábito tira os sapatos, coloca-os lado a lado, antes aperta os laços; de seguida retira as meias, uma de cada cor, às vezes da cor das nuvens e do sol, outras do tronco do castanheiro e da flor do lilaseiro, hoje da cor da alface e do sangue (ele enaltece a bandeira de Portugal sempre que pode, embora em ocasiões confunda o hino dos lusos com o dos nazis e desate a erguer o braço direito como um foguete. Não admira a artrite) e dispõe-as ao lado dos sapatos. Levanta a bainha das calças até aos joelhos e, pegando no guarda-chuva como se fosse um espadim, avança para o castelo da vítima e remete contra os torreões, bramindo:
- Toma! O Reino jamais será teu, mouro!
(O senhor Bê folga fingir-se cavaleiro em luta contra a mourama, nos tempos da Reconquista.)
Após a investida de início, salta para cima do castelo e calca, pulando como uma rã em cima do alvo até desfazê-lo e no lugar sobrar apenas areia. Ao petiz escorrem-lhe as lágrimas, quase não consegue respirar devido aos soluços e fungos. Corre numa gritaria até aos pais, queixando-se da queda do seu castelo frente a um velho.
No entretanto o senhor Bê calça os sapatos e meias (não por esta ordem), pira-se e lentamente passeia à beira-mar, gozando a reforma e inalando o ar do oceano.