quarta-feira, dezembro 29, 2004

Este é um conto que escrevi para o Escreva!, mas como o site está temporariamente indisponível deixo-o aqui.
(A propósito: novidades para breve. Estejam atentos!)

::A Porta no Meio::

Caminho sozinho numa vastidão, paisagem estéril a perder de vista. Do lado direito e esquerdo vejo terra castanha clara sem verde nenhum e à minha frente estende-se um cinzento desbotado do que me parece ter sido uma antiga auto-estrada, mas veículo algum se cruza comigo. Eu caminho no meio. Sei que tanto para a frente como para trás a via afigura-se infinita, mas algo me diz que existe algo em frente. O escape do infinito está lá, à frente. Por isso caminho. Sei que estou prestes a chegar. Posso caminhar durante mil anos, é apenas um segundo; não me canso, não sinto sono nem fome. Continuo a andar. Estou seguro: alcançarei a saída.
No meio da estrada há uma porta de madeira, de aparência gasta, a pintura branca desbotou e tem rachas. Rodo a maçaneta. Entro. Vejo uma sala com um sofá e por cima um quadro que apresenta um tema marítimo: ondas, muitas ondas, espumando no centro do oceano e nem uma gaivota para ver o espectáculo. Ao lado há uma estante vazia e do lado oposto entra luz matinal pela janela. Não fecho a porta. Sento-me no sofá e espero. Pela porta por onde acabei de entrar vejo um buraco rectangular negro em vez da auto-estrada deserta. Só eu podia vir por este caminho e entrar por ela, suponho. Não sei nada, não presumo nada. Ainda não creio em nada. Contento-me com suposições, teorias, a fé é demasiado definitiva para mim, a fé infere estrutura espiritual concluída, edifício completo. Eu ainda só tenho o terreno onde um dia construir esse edifício. E não tenho pressas. Se calhar faço uma piscina.
Pela primeira vez, porque já não ando, aborreço-me. Levanto-me, passeio devagar. Vou à janela. Observo uma imensidão azul. A estante está vazia. Nem tenho leitura para passar o tempo. Estendo-me no sofá e tento entreter-me sonhando acordado. Aborreço-me de novo. O poder imaginativo foi diluindo e não entendo a razão. Sei que não posso retroceder, voltar atrás. Então vou até à parede nua, começo a tactear, fecho os olhos e desejo fortemente. E ali está, outra porta, novinha em folha. Transponho-a e desemboco num quarto com cama de ferro negro onde uma dama verde, vestida de verde, está sentada com um círculo na mão direita. Olha lentamente para mim e torna a concentrar-se no círculo.
- Olá. Sabes onde está ela? Espero há muito tempo – minto.
- Também eu aguardo.
- Isso é o quê?
- A minha oferta.
- Para ela? – estranho.
- Sim.
- Temos de oferecer alguma coisa?
- Convém.
- Mas... ela virá à mesma mesmo sem termos ofertas? – pergunto, baralhado.
A dama verde responde após um longo silêncio que me angustia.
- Vem para instruir sobre a oferta.
- Eu não tenho nada, nada! – digo, crescendo em agonia e caminho em passos curtos e rápidos pelo quarto. – Nada!
A dama pega-me no braço, abre a porta, põe-me no sofá, olha em volta e descobre algo perto da estante. Baixa-se e levanta um livro velho, cheio de poeira. Entrega-mo. Está em branco.
- E agora?
Ela encolhe devagar os ombros e o seu rosto permanece plácido. Antes de sair, pergunto:
- Se... quando eu tiver uma oferta ela virá?
- Sim, a morte virá.
E sai.
Espirro por causa do pó a cobrir a capa. Limpo-a com o braço. Passo as mãos pelas páginas níveas. De súbito a imaginação fértil que eu julgara perdida retorna e pouco a pouco vou sorrindo, sorrindo, enquanto a primeira folha branca se enche de símbolos.




Inspiração: Like a Stone, dos Audioslave.
[Mal acabei de escrever, a canção passou na rádio. Synchronicity in action!]