domingo, agosto 19, 2012

Conto: O Capítulo


Sou a Lília e acabei de ter uma revelação abrumadora. Sim, sim. É uma palavra espanhola, mas eu gosto da sonoridade e da estética implícita. Algo que Abruma é algo que me derruba. Sem apelo. Agravo. Ou consideração. Eu escrevo. Aliás, vivo da escrita. Sou a Lília, mas tenho uma infinidade de pseudónimos e no entanto permaneço absolutamente anónima. Ninguém, ninguém me conhece. Escrevo de manhã à noite; vou ao café da rua ao lado, peço uma bica escaldada, fico cinco minutos; leio os títulos do Diário de Notícias, e logo regresso a casa - e à minha fiel secretária. Aí deposito os meus ossos e continuo a escrever. O que seja. Sou uma escritora que trabalha e que tem trabalho todos os dias. De facto, assim é. Não tenho tempo para nada. Nem para ir ao ginásio. De manhã à noite, a escrever, para pagar as contas. Aumentou a luz, o gás, a água, os impostos municipais. Tudo. Mas vou vendendo o meu trabalho e assim sobrevivo.
Onde é que eu ia? Ah sim, a tal da revelação abrumadora.
Tive um sonho.
Sonhei com a minha Musa. Ela é uma linda ruiva escocesa, que me fala em Galego (às vezes até em Vasco) e que não me passa cartucho. Invejo-lhe os belíssimos caracóis. Contou-me qualquer coisa no sonho, mas só recordei o quê depois do almoço, enquanto lavava a loiça.
- Deus - disse-me ela - Deus, - repetiu - ocupa-se agora a escrever a tua vida romântica.
- Desculpa? - perguntei, dentro do sonho, enquanto tinha os pés presos ao tecto com supercola três e a mirava de cabeça para baixo. A minha belíssima Musa (que não me passa cartucho, tenho de pôr requerimento - nem sei bem a quem - para ma substituírem) mirou-me com aqueles fantásticos e cintilantes olhos verdes e esclareceu que Deus, no próprio momento em que falávamos, se preparava para escrever o capítulo do livro que era eu dedicado à minha vida romântica.
- Já o vi - contou e ergueu-se. Fumava um cigarro com cheiro pestilento que eu odiava, mas ela, por mais que eu pedisse, nunca abandonava o vício. - Ao alto da folha branca A4 digitou, no computador, no programa Word, “VIDA ROMÂNTICA”. Capitalizado. Por baixo colocou, em letra menor: “Anos 10-70”.
Acho que caí ao chão, Abrumada, por volta dessa altura.
- Mas... - eu disse, um pouco confusa. - Eu lembro-me. Aos dez anos gostei do filho do patrão do meu pai. Ele tinha quinze (prefiro os homens maturos). Ele não me ligou pevide, como era de esperar. Na verdade partiu-me o coração quando eu, Lília, entrei aos onze anos no quarto da minha irmã mais velha, Lisa. Lisa tinha acabado de fazer dezasseis anos e beijavam-se ambos na cama dela. O que eu chorei. Semanas a fio. Lisa encolhia os ombros quando me via e suspirava de enfado. Lembro-me do bonita que estava quando ganhou o prémio de Miss Fotogenia no concurso de Miss Portugal, três anos mais tarde. Casou-se com um empresário Macaense e há décadas que não oiço dela. Não éramos próximas, para dizer a verdade.
Aos doze anos gostei de um colega; aos quinze mudei de escola e enamorei-me de um rapaz que tinha dezoito anos e a sua própria mota. Casei-me aos vinte e dois anos, divorciei-me aos vinte e nove. Vivi todo este tempo, perguntei-me a mim própria, sem direcções claras e precisas de um hipotético Deus? Um Deus que escrevia o roteiro da minha vida e agora, aos quarenta e cinco anos, é que lhe dava na telha de escrever essa parte, essa parte essencialíssima?!
A minha Musa, que se chama Begoña, a propósito, esclareceu-me as dúvidas. Garantiu-me que não. Aconteceu assim porque estava escrito.
- Como?! Só vai escrever esse capítulo agora!
Ela suspirou, deu uma passa e finalizou a conversa com um:
- É complicado. E agora vê se acordas que já passa das nove.




[C. de 660 palavras // 19 de Agosto de 2012.]










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