segunda-feira, outubro 14, 2002
Vemos o gato especado a olhar para a janela ou para o ralo do esgoto à espera de caçar a mosca e pensamos, “não, não tem interesse nenhum. Ali não está o livro, ali não está nenhum livro.”
Vemos a vizinha, idêntica a milhares de vizinhas, a carregar o saco das compras, a queixar-se das dores nas costas, a alisar a permanente que fez no dia anterior. A falar sobre a gradação dos óculos e cogitamos, “não, aquilo não tem interesse nenhum”. E tornamos a caminhar, à coca de algo em Grande, um desembarque pirata, quiçá! (Sem nos determos na ideia de que o rio está a trinta quilómetros.) Vemos o vizinho que tem diabetes e que todos os dias cumprimentamos, vemos o cão dele, manco e cego de um olho, velho, tem mais de doze anos, diz o dono. Vêmo-lo e, presuntuosos, continuamos o caminho. “Dali não tiro nem um parágrafo.” E queremos sempre algo extraordinário. Queremos a Miss Marple, o Poirot, o Doutor Watson, aquele do elementar. Queremos marcianos a rondarem-nos a porta, com raios laser ameaçadores. Queremos o Tom Cruise a fazer de bom da fita (“Ah, sim, haverá uma fita. Hollywood não, mas um filme europeu. Intelectual.”). Queremos a Jenifer Lopez. E cenas de sexo a valer. À americana. E depois aparece o carteiro que te diz: “Não há nada hoje.” Para ti, é subentendido. Nem cartas de rejeição nem porra nenhuma. Mas esse Algo Extraordinário vem logo depois da esquina, está assente! Os livros não enganam e eles sempre te (vos, nos) prometeram magia.
Então... porque ela não acontece, porque não a descortinas? Porque és cego. Porque somos cegos. Para o velho com diabetes, para a vizinha com língua de trapo e que se queixa dos bicos de papagaio. Para o carteiro que, se pensarmos bem, tem milhares de histórias. O homem é uma enciclopédia ambulante de estórias humanas, reais, e não tão vulgares como supomos.
A magia vive no gato quieto, à espera da mosca. A magia do livro incógnito e extraordinário e grande já está em nós. É feita dos pequeninos milagres que escolhemos ignorar. A magia não está fora. Está, vive, respira cá dentro.
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