segunda-feira, outubro 18, 2004




[Isto Não É Meu]

“- Não é uma coisa curiosa a posteridade – quase como jogar na lotaria? Será que o infeliz Guillotin, um médico e um filantropo, merecia que o seu nome ficasse para todo o sempre associado a uma máquina de cortar cabeças? É muito injusto. Enquanto outros nomes, como, digamos, Simão e Onan, devido a um mero acto fugaz, se petrificaram em conceitos de ignomínia. E essa Xantipa? Provavelmente a única justa aos olhos de um vagabundo entendido na vida da cidade.


Em contrapartida, temos esse felizardo do Maréchal Niel, que ainda cheguei a conhecer bem, e que não passava de um grande maçador. Não há nada mais desinteressante do que esses generais do Segundo Império, que se desvanecem na memória como sombras – imitações de uma imitação. Aquele comandou em Sebastopol, uma das carnificinas mais estúpidas de que há memória, e incentivou à adopção de uma arma ainda mais mortífera do que as existentes, e com tal zelo o fez que nisso encontraria a morte. Tudo, e mais o seu livro sobre a guerra da Crimeia, se afunda no merecido esquecimento. E que acontece? Um jardineiro genial não é que vai baptizar a mais bela rosa da sua cultura com o nome de «Maréchal Niel»? Assim se logrou um enxerto : enquanto o rebento histórico vai mirrando, esta flor desabrocha nos jardins em todo o seu esplendor mítico. Daí em diante esse nome ficou milagrosamente associado a um perfume e a uma cor. E é assim que sempre acontece – só poucos são dignos da sua fama.


Ducasse gostava de se entregar a tais puzzles, que lhe serviam para preencher as lacunas do seu tempo, precisamente como agora, enquanto escolhia flores numa florista(...).”

in “Um Encontro Perigoso” de Ernst Jünger, Difel, Págs. 38-39.