sexta-feira, junho 10, 2005

Escrevi o texto abaixo para este desafio do Escreva!. Ainda podem participar até ao final deste mês :)



O Funeral


Convidaram o senhor Bentley para o funeral do vizinho Tim_booth, velho com as traças (sem desprestígio para as traças), que tencionavam realizar ali para os lados do Lumiar, perto do antigo palacete dos Holstein.
A intenção dos anfitriões (porque funeral sem anfitrião é como um jardim sem rosas. Ou gladíolos) era a de passar a mensagem subtil que, efectivamente, o seu tempo na terra esgotara-se há muito e essa teimosa insistência em conservar-se vivo começava a ser maçadora.
No funeral (não se apresentou ao velório. Deplora-os) o senhor Bentley comportou-se impecavelmente. O motivo era simples: tinha sido drogado pelo empregado do café, ricardomteixeira, que de modo sub-reptício despejara no chazinho de limão o vicodin previamente esmagado em finíssimo pó.
O senhor Bentley navegava por entre as pessoas como se navegasse num mar de algas que lhe embaraçavam os membros e a voz. Mas conseguiu manter os olhos abertos.
Viu Silvino Bastos, sargento reformado da GNR, gajo dos seus noventa anitos, com a pele da cara escura plantada de rugas, e uns arremessos de pêlo no topo do crânio, a estender os braços para os lados e a gabar a vida honrada e de amplas virtudes que Tim_booth levara. Quem o ouvisse julgaria que, de tão puro, o defunto não tinha nunca partido uma unha.
A bajulação ao morto seguiu os trâmites do costume, mas sem choradeiras. O senhor Bentley teve a peculiar intuição que ali todos aqueles aviltantes velhinhos e velhinhas se tinham reconciliado pacificamente com o horizonte da morte e andavam há muito a preparar-se para ela, sendo a comparência no funeral apenas outro ensaio. Ou prelúdio. Porque, a não ser por isso, não se justificaria que saíssem de casa, tendo em conta a sua encolhida saúde. Mas vieram. De andarilho, bengala, muletas, cadeira de rodas, ou apoiados em familiares mais jovens que os amparavam de cada lado, arrastando-se o melhor que podiam para a campa, baixando-se aos tremeliques para pegar num pedaço pequeníssimo de terra e lançarem-no desajeitada mas decididamente à tampa do caixão, já a emprenhar a cova.
O senhor Bentley pensou que se calhar eles estavam mais perto de Deus do que ele e pela primeira vez duvidou da sua Iluminação.
Mas teve pena de não ter conseguido dizer mal da esposa do finado, a CaMiLiNhA, pois certamente seriam palavras memoráveis.



[Continuo obcecada com esta personagem. Não consigo avançar para outras.]

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