sábado, julho 14, 2007

CONTO DO GAJO SEM NOME

Ele tem planos, tem demasiados planos. Em mão. E desconfianças. Mas desconfianças cultivadas para mitigar o sereno tédio diário da sua vida. É um homem de 42 anos com a aparência de 50. Por não ter de trabalhar para viver - vive de um pequeno, mas modesto fundo que herdou do tio-avô paterno, legado mais por piedade que por sentimentos de afeição - e por ter um apartamento pequeno herdado da mãe, não o mortificam pensamentos como os da maioria da população. Onde vou arranjar dinheiro para pagar ao banco a prestação que voltou a subir? Como vou comprar os livros aos miúdos em Setembro? E agora, doente, estou de baixa e a receber menos, como é que eu faço face às despesas? E o miúdo tem de ir ao dentista. Onde é que eu arranjo 60 euros?
O seu martírio é o de arranjar divertimento quotidiano para afastar a modorra da existência.

Vê os vizinhos, emigrantes a viverem cada casal no seu quarto, a chegarem e a partirem dos apartamentos vizinhos. Vê os sacrifícios, os alugueres exorbitantes. Cheira-lhes os sovacos perfumados a suor após dia valente na labuta. Quase sente inveja e a seguir recorda que não, assim é melhor: passar pela vida como quem está no convés de um cruzeiro às ilhas gregas. A Mikonos. À Turquia. O Mediterrâneo (imaginado) por lar. O seu Mediterrâneo é o suave embalo do lento imaginar de vidas alheias, inventar-lhes histórias e vivências que não são as reais.
O filho será dele, do ucraniano loiro com a dureza de mármore puro no olhar azul? Não. O miúdo tem bochechas vermelhas de boneca de porcelana branca, cabelo castanho-escuro espetado e lábios cheios de puta de bordel.
Decide. Imagina. Foi assim.

O ucraniano para ganhar a vida na terra dele fazia uns biscates para alguma rede informal de escravatura branca. Um dia coube-lhe em missão transportar um bebé de 22 meses. Era para ser vendido a pais adoptivos desesperados. A criança silente e adormecida fê-lo recordar as miúdas de 7, 10, 12 anos que levava sabe Deus para onde. Abandonou tudo, que era pouco. Nada disse a ninguém. Pagou papéis falsos. Na Polónia. Na Sérvia. Escondeu-se da polícia na França, na fronteira espanhola. Chegou a Portugal. Trabalhou nas obras anos a fio como ilegal. Não lhe pagavam, os patrões. Legalizou-se há cinco anos. O miúdo é português. Está cá desde os três anos. Português. Mais português do que aquilo é impossível. O seu ídolo é o Ronaldo. A equipa preferida o Benfica. Gosta de sardinhas assadas e é maluco por caracóis. O pai (adoptivo), o pai em segunda-mão!, foi levado a agir por uma culpa que gotejava para um alambique escondido no coração, uma culpa que era a faca quente a deslizar no peito. Assim uma dor serena e morna e profunda apesar de a faca deslizar à superfície - como um tubarão a fingir-se solitário. A barbatana que vemos não pertence aos dentes que nos arrancam a carne.

Mas quando chegou a loira platinada, falsa, alta, sorridente, de mini-saia, a chorar e a abraçar marido e filho ele teve de redefinir a história.
Ah não. Pois. Vê as parecenças com a mãe. E, quando o ucraniano chora e abraça a esposa que mandou vir da pátria anos atrás, distingue as semelhanças do pai com o garoto. Há algo presente ao redor dos olhos, uma triste beleza. Um baixar de guarda que os aparenta. O filho é maternal; o pai rígido e duro. O filho é como uma mãe para o pai. A mãe afinal esteve de férias na terra natal, visitou a velha avó, doente e cega. E o casal só alugou a casa vai para quatro meses. Como é que ele só se apercebeu disso agora?

(Que nome hei-de dar a este gajo? Sugestões?)

Ocupa-se então a imaginar a vida alheia da menina do terceiro esquerdo. Muito bonita. Mas ele é imune a tesões. Passa pela vida como velho satisfeito pelo que viveu - apesar de nada ter vivido. Vive a falsa sabedoria dos idosos.
E há a vizinha do lado, velha de facto e mais calada que o nosso homem. Essa seguramente era a mais interessante. Hum. Nem sempre. Havia em Matilde, de 75 anos, qualquer elemento indefinido que o perturbava. Como a mosca sente uma inqualificável perturbação no ar antes de aterrar de cabeça na teia da aranha diligente.
Ele não gosta do nome Matilde. Por uma certa aversão e inquietação tende a não se alongar no imaginar de uma outra vida para a vizinha do lado.
Por exemplo, o recém- reformado do outro prédio é decerto espião da CIA no activo.
Porque...
(Detém-se, o nosso homem, de caneca de café com leite na mão, a segurar as páginas iniciais do Correio da Manhã e com um olhar vazio pregado na gaiola do canário deserta.)

Ora, porque sim. Espiões no activo lêem jornais e sentam-se na esplanada e em bancos de jardim a apanhar sol.
Têm de o fazer. Deveres contratuais.
(E este tipo de quem desconheço em absoluto o nome dá um estalinho com a língua, arrota, encosta-se para trás, no rosto o sorriso da Monalisa, contente pelo belo passeio - sem ondas - no seu Mediterrâneo particular.)

Sem comentários: