quarta-feira, outubro 31, 2007

Amantes e Gatos

Escrevi este texto para participar neste desafio do Escreva!

E, porém, não segui as minhas próprias regras, lol: o texto tem bem mais do que as 300 palavras estipuladas :p Gostei da história e no entusiasmo, enfim, prossegui.

I hope you enjoy.

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Hoje de manhã ao sair de casa tive um encontro inesperado com o fantasma do meu gato morto. Na verdade parecia ser a mistura, esse gato, de todos os gatos que eu amei e tive. Era em parte branco, mas, num golpe de luz (ou de plasma esotérico ou seja lá o que for) o dorso brilhava em azul de cetim, na cor da noite, ou em cinzento – e aí lembrava-me da Queiroz, a minha gata que morreu e por quem chorei.
Mas este era indubitavelmente macho. E tão vívido de carnes e presença física que duvidei por instantes tratar-se de um fantasma.
Falou comigo.

- Olá – saudou-me. - Está um belo dia para andar pelas ruas.
- Ah sim. É vero.
- Já não te recordas de mim.
- Pois claro que recordo: és a quinta-essência dos gatos, és todos os gatos que eu já tive e vou ter. O próximo quando chegará à minha porta, podes dizer-me?
Ignorou a questão. Ao invés sacou de um cigarro não sei de onde, já aceso, com incomparável destreza filídia tendo em conta que gatos, enfim, não possuem polegares, e pô-lo na boca.
- Isso faz-te um mal...
- Estou morto – relembrou-me.
- Ah pois, é vero.
(Senti-me estúpida.)
- Vim lembrar-te que éramos amantes no Antigo Egipto.
- Nós? Mas tu és um gato.
- A tua perspicácia para o óbvio é notável porém pouco rara. É facto: sou um gato. Tu eras um sacerdote.
- Eu?! Deus Santíssimo: eu abusei de gatos!
- Não, não. De todo. Éramos amantes a um nível mais... espiritual. Tu eras o meu marido e eu o teu marido.
- Esta conversa é por demais absurda. Vou-me embora.

Ele acabou o cigarro, deu-lhe um piparote novamente com considerável destreza felina e miou que não, não fosse, por favor ficasse.
Senti-me ridícula e envergonhada. As coisas inenarráveis que o meu antigo Ser fez aos gatos. Ó, Deus Altíssimo, o castigo!, nem quero imaginá-lo.
Ensaiei uma desculpa. Ele emitiu um som de desprezo por entre a boca sem lábios que se enredou nos bigodes reluzentes.
- Antigo Marido – disse, pousando formalmente a pata direita no meu joelho esquerdo (eu ajoelhara-me), - vim apenas relembrar-te o quanto te amei, o quanto me amaste. Foi um belo tempo, o nosso, milénios atrás. Havia incontáveis manhãs iguais a esta. O meu coração ainda bate no teu, o teu coração está ainda alojado no meu e, por mais pessoas que eu ame no futuro, quero dizer-te que a ti vou amar-te por todo o sempre.
Envergonha-me confessá-lo: chorei.
Chorei tanto. Ele veio relembrar-me um amor que eu não sabia ter tido. Chorava ainda quando pediu indicações para a papelaria para comprar tabaco. Não fez tentativa de consolo, não tentou parar as minhas lágrimas... talvez porque a minha tendência “para o óbvio” ser “notável porém pouco rara”. Se houve e há amor para quê chorar? Não é lógico?

Porque me abriu ele o coração assim? Talvez para eu deixar entrar ar nele, uma brisa, uma água, um cheiro a terra molhada e a eucalipto.
Levantei-me. Estraguei as meias de vidro nos joelhos, sujei as botas de terra. Foi como se uma chuva tivesse vindo e me tivesse limpo todas as impurezas passadas.
Ó, Deus Sereníssimo, como eu amo os gatos!

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