1.
Amélia: Limpaste os vidros?
2.
Bruna: Estava escuro.
3.
Amélia: Estava escuro como ontem ao meio-dia?
4.
Bruna: Vai encher-te de pulgas.
5.
Amélia: Está bem. Hás-de cá vir pedir batatinhas.
* * *
Amélia
inicia o diálogo, a comunicação, com o pedido de uma informação. Trata-se de um
acto linguístico directo, já que foi colocada uma questão de modo frontal.
A
primeira condição de que devemos estar cientes é a da vontade de comunicar
entre as participantes, i. e., o Princípio da Cooperação no âmbito da
comunicação que, em termos gerais, significa, que há entre as partes vontade de
comunicar. Aliás, esta vontade pode em princípio ser cumprida porque tanto uma
como a outra se exprimem numa língua natural ou comum. Ou seja, partilham um
código idêntico de linguagem pré-estabelecido.
Portanto,
recapitulando:
1)
Há a vontade e o desejo de comunicar;
2)
Há o conhecimento de um código comunicativo comum;
3)
Não há impedimento nem físico nem mental que impossibilite o normal desenrolar
da comunicação.
Além
de tudo isto existe também o contexto comum a ambas as falantes.
Portanto,
que género de mensagem estão ambas a tentar transmitir à outra?
Como
dizia aquele cavalheiro que nunca foi apanhado na Inglaterra:
-
Vamos por partes.
Bruna
que, já anteriormente determinado, respeita o Princípio da Cooperação no âmbito
comunicativo e partilha um código comum e, para além disso, também um contexto
referencial, responde à pergunta directa - não respondendo de todo. E no
entanto a resposta apesar de não directa foi dada e compreendida por Amélia. De
acordo com a questão, uma maneira adequada de Bruna retorquir seria:
-
Sim.
Ou:
-
Não.
Ou
ainda:
-
Não - seguida de uma explicação detalhada do motivo.
Não
obstante, Bruna, deu-lhe na telha e não fez nada disso. Um extraterrestre,
desconhecedor do nosso particular mecanismo comunicativo terreno, ao
testemunhar esta interacção iria considerá-la desadequada, absurda e insana.
Mas não o é. E porquê? Porque Amélia está segura de que Bruna está a cooperar
na comunicação, logo, infere que esta informação (“estava escuro”) é relevante
para a questão. O “não, não limpei” que, logicamente, devia ter sido dito antes
do “estava escuro”, é adivinhado, está subentendido na troca comunicativa. Uma
resposta completa seria:
-
Não limpei por estar escuro e por isso era impossível ver as manchas.
Repetindo:
parte da comunicação é adivinhada, inferida, deduzida. Quase de modo
telepático, dir-se-ia. Bruna escolheu logo revelar porque motivo não tinha
limpo os vidros. Está, então, a praticar dois actos ilocutórios: um em que
afirma que o dia está escuro e outro em que diz que não limpou os vidros devido
a tal facto. (O chamado dois em um.) Se pensarmos racionalmente é um
desperdício de recursos delinear na fala,
exaustivamente, cada um destes actos linguísticos. Pura perda de tempo.
Talvez até gravado na biologia humana, na sua génese evolutiva, esteja este
salto inferencial que permite deduzir de algo que é dito algo totalmente oposto
ou permite adivinhar que mais do que uma informação está a ser transmitida.
Continuemos
a dissecação.
Relativamente
à segunda intervenção (“Estava escuro”), cabe-nos questionar: foi quebrada
alguma máxima conversacional de Grice?
(O
Princípio da Cooperação conversacional pede, Exige, requere!, que haja uma
contribuição para o diálogo.)
Ora
bem. A Máxima da Quantidade (não dar nem mais nem menos informação da que foi
requerida) foi quebrada?
Sim,
porque para ter sido satisfeita bastaria um sim ou um não. Bruna forneceu
informação que não pedida na altura.
E
quanto à Máxima da Qualidade? (Diz apenas aquilo que sabes ser verdadeiro e de
que tens provas.) Foi quebrada?
À
primeira vista pode dizer-se que não, não o foi: estava efectivamente escuro.
Porém, lendo a intervenção seguinte, pode ficar-se com dúvidas. Nela, Amélia
coloca outra questão:
-
Estava escuro como ontem ao meio-dia?
Desconhecendo
o resto do texto pode elaborar-se uma série de deduções que confirmam a segunda
intervenção, a de Bruna. Podemos supôr que o diálogo tem lugar num escuro dia
de inverno, o céu está coberto de nuvens negras ameaçadoras, que escondem
totalmente a luz brilhante do Sol, impossibilitando a visão efectiva de manchas
nos vidros - e, é lógico, a sua limpeza. Pode-se, também inferir que Amélia
está longe dos vidros e fechada entre quatro paredes, incapacitada de ver o
exterior. Ou seja, supomos que é uma pergunta franca e sincera:
-
Estava escuro como ontem ao meio-dia?
Todavia
logo nos damos conta que se trata de Ironia quando vemos a quarta intervenção
desta conversa. Nela Bruna profere algo que parece quebrar a Máxima da Relação
e tem toda a aparência de uma ordem imediata:
-
Vai encher-te de pulgas.
O
tal extraterrestre, que não conhece as subtilezas da conversação humana, e
talvez tenha aprendido tão-somente o básico, pode espantar-se e pensar que
Bruna é a superior hierárquica e que aquela é uma ordem imperativa à qual deve
obedecer de imediato e, logo, deixar de fazer perguntas parvas. O extraterrestre
pode julgar que os superiores hierárquicos humanos (ou os indivíduos de maior
estatuto social) têm uma estranha forma de se fazer obedecer: num momento são
iguais e no instante seguinte estabelecem a inquestionável superioridade de
estatuto por meio de uma ordem que parece vir a despropósito.
Contudo,
nós, humanos sabemos, pela quarta intervenção, que a pergunta de Amélia que a
antecede, não foi inocente e de facto nem pergunta era, antes uma insinuação,
uma frase carregada de ambiguidade e veneno. E uma acusação bem explícita,
ainda que ambígua. Tratou-se de uma ironia linguística que carregava nela
implicitamente a informação de que Amélia não acreditava no que Bruna lhe dizia
e que na verdade não havia limpo os vidros por não o ter desejado fazer. Para Amélia
não houve factor exterior a influenciar a decisão. O leitor (ou ouvinte
hipotético, que porventura oiça este curto diálogo) infere que “ontem ao
meio-dia” não houve eclipse solar e o céu esteve descoberto, sem nuvens e com
uma visibilidade excepcional.
Portanto,
quanto à terceira intervenção, todas as máximas de Grice foram respeitadas?
A
Máxima da Quantidade não foi respeitada porque foi fornecida, mais uma vez,
mais informação do que a que era necessária. (Era desnecessário relembrar, para
a conversa actual, que ontem também
esteve, e tomando a frase à letra, escuro.)
A
Máxima da Qualidade foi, todavia, violada porque (e assumindo que Amélia não
tem acesso ao exterior) ela afirma através da ironia algo de que não tem
provas: que o dia lá fora está bonito e descoberto.
A
Máxima da Relação (ser relevante) não foi infringida porque Amélia permanece
dentro do assunto tratado.
E
quanto à Máxima do Modo? Foi quebrada porque imbuída, a pergunta, de
ambiguidade e insinuação - desta maneira Amélia absteve-se de ser directa e
acusar Bruna com frontalidade.
Continuando.
Analisemos agora a quarta intervenção, a de Bruna:
-
Vai encher-te de pulgas.
Novamente,
tomando esta ordem literalmente, pode-se elaborar uma série de suposições.
a)
Bruna é a chefe de Amélia e trata-se de uma ordem directa (algo já descartado);
b)
vendo que a) não é possível, tentemos encontrar um sentido implícito para esta
ordem aparente. Amélia sabe que Bruna continua a cooperar no diálogo, portanto,
que informação lhe está a querer passar com esta ordem aparente? Seguindo o
raciocínio lógico, Amélia compreende que Bruna percebeu bem a ironia e o
sarcasmo da sua questão (que não era de todo uma questão) e que lhe desagradou
esse sarcasmo. Quer fazer-lhe passar a mensagem
tanto do seu desagrado como do
facto de que não apreciou ser chamada de mentirosa (pois o que Amélia afirma,
dissimuladamente, dentro da pergunta que não é uma pergunta, é que Bruna mentiu
e preferiu não limpar os vidros. Na acepção de Amélia não havia nenhum tipo de
impedimento para cumprir esta função. Bruna revela o seu desprazer de modo nada
subtil dando uma ordem aparente para se ir “encher de pulgas”. Na verdade este
é um insulto grave já que a chama de cadela (ou pressupõe que o seja). Ou cabra
(ambos os mamíferos possuem pêlo em abundância). Regressando ao hipotético
extraterrestre, ele poderia, levando literalmente a frase, pressupôr outra
possibilidade, aberrante, implausível para nós, mas quem sabe, não para ele:
A
possibilidade de Amélia ter a capacidade de se transfigurar em cabra ou cadela
e a frase ser, não um insulto, e sim antes um pedido para que a colega
relaxasse regressando a uma forma animal mais contemplativa do mundo.
Porém,
voltando a um contexto não tão fantasioso, e limitando-nos à realidade das
coisas possíveis, reflectindo sobre a frase percebe-se ser a mesma um insulto.
Se Bruna fosse a líder talvez quisesse com ele reassegurar a dominância do seu
território emocional e impôr o seu poder, fazendo-se (na sua opinião) respeitar
pela que é na realidade a sua subordinada. Mas, seguindo o raciocínio lógico, é
provável que Bruna percepcione Amélia como uma pessoa venenosa e que foi esta
que em primeiro lugar a insultou chamando-a de mentirosa (ainda que
indirectamente). Portanto há a possibilidade de se tratar de um reafirmar de um
território emocional e psicológico. Bruna torna claro: estas fronteiras estão
bem definidas. Não voltes a pôr-lhe a pata em cima. Respeita-me. Com este
insulto está a deixar claro que são colegas e iguais e que não a pode rebaixar
de modo algum.
c)
Contudo podemos, se quisermos, deduzir ainda outro insulto na quarta intervenção. Quando Bruna comanda: “Vai
encher-te de pulgas.” pode estar a infligir uma ferroada dolorosa à colega.
Quem sabe se nos balneários Bruna tenha visto Amélia vestir-se. E talvez tenha
reparado numa (hipotética) profusão capilar que cobriria o inteiro corpo de
Amélia. Pode ser que na altura tenha pensado: “Parece um urso.”, mas não o
proferiu por que iria contra as elementares regras de boa educação e cortesia
entre colegas; mas que, nesta ocasião, sentindo-se ela mesma primeira e
vilmente insultada (não limpaste os vidros porque não quiseste. Estás a mentir.
És uma mentirosa), resolveu revelar (mais ou menos indirectamente) aquilo que
pensava: tens pêlos a mais, pá. Compra um cortador de relva.
Em
relação à quinta e última intervenção, feita por Amélia. Quando ela afirma:
-
Está bem.
Não
está de facto a concordar literalmente com a ordem anterior. Logo, está a
infringir a Máxima da Qualidade: afirma algo que sabe não ser verdade. Esta não
é uma concordância. Não é uma cega aceitação da aparente ordem antes dada. Não
deve o observador (ou ouvinte) casual deste diálogo presumir que Amélia prontamente
anuiu em cumprir a ordenança de Bruna. É uma concordância irónica. É uma
expressão que serve antes a função de terminar o pequeno diálogo. A frase
seguinte:
-
Hás-de cá vir pedir batatinhas.
Também
não carrega nela o significado literal de que logo a seguir Bruna vai
confeccionar um cozido à portuguesa. Não se deve inferir que Amélia conhece os
ingredientes disponíveis na cozinha de Bruna onde esta cozinhará o hipotético
cozido à portuguesa. E que sabe não ter as batatas indispensáveis. E que a
recusa anterior em limpar os vidros conduzirá à consequência natural de uma
recusa em emprestar as tais ditas batatas.
Um
extraterrestre teria uma certa dificuldade em seguir o diálogo se desconhecesse
toda esta rede de inferências que o entrelaça.
Se
não estamos a falar de batatas, então estamos a falar do quê?
Novamente
recorrendo a um raciocínio de tipo dedutivo, esta última mensagem transmite na
verdade duas mensagens:
a)
A conversa acabou.
b)
Aviso de que no futuro não a ajudará.
Este
aviso ou ameaça foi feito recorrendo a uma metáfora.
Talvez
o diálogo fosse mais compreensível para o hipotético extraterrestre, observador
e investigador da comunicação humana, se o mesmo tivesse sido feito em termos
mais claros.
A:
Limpaste os vidros?
B:
Não limpei porque estava muito escuro na rua, impossibilitando-me de ver as
manchas.
A:
Não acredito no que me dizes. Aposto que estava claro o suficiente para os
teres limpo e não limpaste porque não quiseste. Estás a mentir.
B:
Não admito que me chames de mentirosa. Insultaste-me e com isso ultrapassaste
uma clara fronteira que tu, enquanto colega e igual, não deves ultrapassar. Em
recíproco vou fazer-te o mesmo para que fique bem claro que não o deves
repetir. Cabeluda.
A:
A conversa terminou. Deixo-te com o aviso de que no futuro não te ajudarei se
acaso precisares de auxílio no trabalho.
(A
sexta intervenção podia ser, por exemplo, um estalinho da boca.)
Eu
pessoalmente prefiro o diálogo que inclui batatinhas.
Nesta
intervenção final de Amélia, quantas máximas de Grice foram respeitadas ou
violadas?
A
máxima da quantidade foi violada porque Amélia não precisava de informar Bruna
do que faria num hipotético futuro.
A
máxima da qualidade foi quebrada tanto ao afirmar “Está bem”, quando claramente
não estava, como ao dizer “Hás-de cá vir pedir batatinhas” uma vez que Amélia
desconhece se no futuro Bruna lhe pedirá ajuda.
A
máxima da relação tem a aparência de estar a ser quebrada, pois a frase parece
vir do nada e não estar relacionada com o contexto, mas sabe-se que sim.
Portanto esta máxima não é infringida.
A
Máxima do Modo é também respeitada se recorrermos de novo a um raciocínio
dedutivo. É um aviso claro, objectivo e breve. Apesar de, na aparência, ser obscuro. Porém sabemos que tanto Amélia como
Bruna partilham um idêntico código linguístico e conhecem o significado desta
expressão.
E
pronto, quanto a análises, ficamos por aqui~.
(17-22
Abril de 2012)
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Bibliografia:
LIMA, José Pinto de (2007), Pragmática Linguística, Lisboa, Caminho.
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