(Originalmente escrito e posto no blog em Dezembro de 2005.)
Hipotéticos Dias Futuros
7 horas: acordo, expulso Buda, as divindades Maias e Deus da cama, filho da mãe, que pés frios, e saio para o glaciar do quarto.
7h-7h30: faço exercício físico e meditação transcendental. Deus toca-me no ombro, peço-lhe educadamente que me desampare a loja e não torne a aparecer-me à frente. Sai, amuado.
7h30-8h: faço chá, amaldiçoo a maré que me molhou os pés e se retrai para debaixo do sofá, digo psst-psst, musa? Anda, tenho leite morno e bolachas. E frango, frango assado. O silêncio ecoa nas paredes. Espalho grãos de milho e ervilhas congeladas no corredor para atraí-la.
8h-12h: escrevo, sofro de interrupções várias, as personagens jorram-me, líquidas, pelas orelhas, torno a pô-las cá dentro, os candeeiros choram, mais outra lâmpada fundida, fungam, as cadeiras e o aquecedor bocejam, a mesa-de-cabeceira estira os braços e diz: vou lavar os dentes. Respondo: não gastes a porra do gás todo.
12h-13h: faço o almoço, vou para a rua, como já não há gás espero que chova e tomo banho vestida.
13h-15h: como e leio, durmo a sesta. Converso com unicórnio. E aí vizinha nem sabe nem sonha nem imagina ai mas onde é que estou com a cabeça roupa de cor misturada na branca é do meu pequeno está muito frio para andar por aí despido sujeito a correntes de ar então não é que a mulher do vizinho lá de baixo sabe o cigano ah é ela que é cigana não sabia foi preso por tráfico de droga você sabe a ciganada e a pretalhada é tudo assim - diz enquanto estende as crinas brancas a cheirar a lixívia e woolite. Os unicórnios racistas são uma fonte inesgotável de inspiração, preciso deles como da fina ponta das canetas rotring (0.1), que custam o caralho de uma fortuna.
15h-17h: pela primeira vez no dia o crítico interior faz a sua aparição. Mato-o com o lança-chamas. Esfuma-se numa bola de fogo, os vizinhos vêm queixar-se dos berros e que não pode ser, todos os dias, todo o santo dia, a matar gente, a matar gente, a matar gente. Vão chamar a Deco. Eu faço-lhes um manguito e respondo que podem até chamar o Figo. Regresso à escrita.
17h-18h: leio. Danço. Leio.
18h-20h: antes mesmo de me sentar à secretária já o estafermo do crítico interior me ocupou a cadeira e julga com uma sobrancelha alteada e pegando com dois dedos a ponta da folha, cheio de nojo, a minha escrita, que abomina e que por pena não daria nem à fogueira, merecedora de material superior que lhe faça as chamas. Dou-lhe um tiro. Vários. Arrasto-o para o lado e sento-me a escrever. A maré que vem da sala limpa o sangue e um tubarão faz o resto da limpeza.
20h-21h: hora da janta.
21h: a musa finalmente aparece, faço-lhe massagens e festas. Desesperadas tentativas de sexo desvairado da minha parte, que educadamente recusa. Fumo um charro com a musa, espirro vezes seguidas, não sei ¨travar¨ o fumo, não consigo aprender. Maldita alergia que me cerca o ensino a meio. Nem no recorrente lá vou. Vejo a cara da musa envolvida em névoa diáfana, mais fina que a espessura da hóstia a envolver doces. Parte depois de me pedir dez euros para o bingo.
21h-23h: sozinha... leio distraída. Fito o sítio vazio que continha o televisor e imagino as notícias: hoje rosas pariram pássaros feios como crias de dinossauros.
23h: Deus reaparece. Com a bíblia, ainda por cima. Dou-lhe porrada, murros, socos. Refugia-se na cama e lá fica até eu me juntar às 23h21. Empurro-o com os pés para o fundo, na vã tentativa de o sufocar. Buda e os deuses Maias regressam da borga, a cair de bêbados.
24h: adormeço.
Os Sábados e Domingos reservo para: acordar tarde, essencial -íssimo!- não escrever, fazer nenhum, não me vestir nem tomar banho, limpar a casa, fazer mudras, contemplar teoremas matemáticos, colher limões, atazanar abelhas com o meu ferrão, arrotar, empanturrar-me de doces sem açúcar e, no geral, respirar aliviada por estar viva - porque estar morta era uma chatice. Naturalmente esmurrar Deus. Ter considerações lúbricas acerca da musa. Pensar em metáforas poéticas para a seduzir e levar à cama. Um dia vou conseguir. Espalhar migalhas de pão-de-ló e pastéis de tentúgal para atraí-la, Deus tenta comê-las, vai à Misericórdia, estafermo, vai à sopa dos pobres, digo e com o pé no rabo empurro-o para o chão.
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