Bem, meus lindos, como não tenho nada de original para vos dar, aqui fica um poema.
IN MEMORIAM
«Requiem aeternam dona eis,
Domine, et lux perpetua
luceat eis.»
Que a terra lhe seja pesada.
Que lhe apodreça o corpo e os olhos fiquem vivos,
Se lhe soltem os dentes e a fome fique intacta
E a alma, se a tiver, que lha fustigue o vento
E arrase com ela a memória gravada
Na lembrança demente dos que o choram.
Que a mulher que foi dele oiça o vento na noite,
Cheio de ossos e uivos
E garfos aguçados
E que reparta o medo com o primeiro intruso
E o vento se insinue pelas portas fechadas
E rasteje no quarto
E suba pela cama
E lhe entre no olhar como estiletes de aço,
Lhe penetre nos ouvidos como agulhas de som,
Lhe emaranhe os cabelos como um nó de soluços,
Lhe desfigure o rosto como um ácido em chama.
Que a mulher que foi dele oiça o vento na noite,
Que a mulher que foi dele oiça o vento na cama!
Que o nome que era o seu o persigam os ecos,
O gritem no deserto as gargantas com sede,
O murmurem no escuro os mendigos com frio,
O clamem na cidade as crianças com fome,
O soluce o amante de súbito impotente,
O maldigam no exílio as almas sem descanso.
Que o nome que era o seu seja a bandeira negra,
A pálpebra doente,
O vómito se sangue.
Que o gesto que era o seu o imitem as mães
Que se torcem de dor quando abortam nas trevas,
O desenhem a lume os braços amputados,
O perpetue o esgar dos jovens mutilados,
O dance o condenado que morre na fogueira.
Que o gesto que era o seu seja o punhal do louco,
A arma do ladrão.
A marca do vencido.
Que o sangue que era o seu o farejem os cães
Nas veias de seus filhos.
Que o sangue que era o seu se lhe veja nas mãos,
E lhe aperte os pulsos como algemas de lodo,
Lhes carregue o olhar como um sopro de infâmia,
Lhes assinale a testa como um escarro de fogo,
Lhes atormente os passos como um peso de lama.
Que o sangue que era o seu seja o rictus da tara,
A máscara de sal,
A vingança do pobre.
E que o Exterminador, no seu trono de enxofre,
O faça tilintar os guizos da tortura
Até que o mundo o esqueça
E mais ninguém o chore.
José Carlos Ary dos Santos
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