quinta-feira, março 18, 2004

Camilo Castelo Branco é para mim dos autores portugueses que já li – o maior.
Ainda não li todos, ‘tá certo, de modo que o julgamento é parcial.
Mas acho-o superior ao Eça. E ser superior ao Eça é difícil, catano.
Às vezes, antes de escrever, leio algumas páginas dele, para mergulhar nas palavras, na língua. Noto que escrevo sempre melhor depois de ler Camilo e isso não me acontece com outros autores. Devia ter lido a obra completa do escritor na infância, mas não li. A minha infância não foi pobre, nunca me senti pobre, mas não havia dinheiro para livros, nem o hábito dos livros. Não quero falar disto como se fosse uma fatalidade, mas apenas um facto. Eu tinha comer, roupa, e graças a Deus televisão. Sem televisão e sem livros, porra, o que é que eu podia aprender? Aprender na escola? Mas o que é que se aprende na escola, digam-me? A escola é dever e é o prazer que nos ensina (cá para mim). Também não havia bibliotecas. Davam-me livros da Anita pelos anos – que eu adorava. De resto lia livros aos quadradinhos que eram mato no bairro onde cresci. Os putos tinham o hábito de trocá-los. É verdade que em pequena nunca me senti pobre – nem fui. Mas hoje, agora, sei que fui pobre em livros. Tinha a ânsia da leitura, sem os livros para saciá-la.
Fazem-me tanta falta hoje todos os livros que eu não li.
Custa-me muito mais escrever.
Bom. Adiante.
Transcrevo parte de um capítulo hilariante do livro “O Retrato de Ricardina”, escrito por Camilo Castelo Branco. Ó pá, estejas lá onde estiveres, a gente ainda te lê. Tu sabias escrever, sacana. Ó se sabias.

XXI

Vantagens de cinco prémios

Para lá vamos, disse Alexandre Pimentel.
Foram.
O bacharel formado requereu uma delegacia, documentando a petição com as cinco certidões dos seus prémios.
Esperado – respondeu o ministro da Justiça.
Requereu um lugar subalterno na Secretaria do Reino.
Esperado - respondeu o ministro do Reino.
Requereu pela Marinha a directoria de uma alfândega no ultramar; requereu por todas as repartições, desde auditor até escrivão de direito.
Esperado: era o escarro que expectoravam os ministros nos diplomas de Alexandre Pimentel.
D. Ricardina estava pobre. Moravam num quarto andar da Rua dos Calafates. O casaco de Alexandre mostrava as coçadas costuras. A senhora não ia à missa à míngua de sapatos.
O filho, beijando as lágrimas da mãe, dizia-lhe:
- E os meus prémios?... Se o pergaminho tivesse mais consistência, fazíamos sapatos dos diplomas, minha mãe... Não chore, não chore, que eu amanhã começo a ganhar um cruzado.
- Em quê, meu filho? – acudiu a mãe.
- Vou ser revisor e tradutor num jornal político. É trabalho de noite. Depois, assim que puder vestir-me, vou praticar advocacia; e, assim que souber vender conselhos e tirar ladrões e assassinos das garras da Justiça, a minha posição e a sua melhoram.
Assim aconteceu, quanto à primeira parte do seu programa. De tradutor e revisor, ao fim de quinze dias, afidalgou-se com o foro grande do artigo de fundo. Rebateu a política do Governo, num ponto controvertido de direito prático, obtida prévia licença do redactor-em-chefe. Os seus artigos, remunerados pela admiração geral, e vitoriados pelo silêncio dos contendores, fizeram o prodígio de lhe erguer o estipêndio a novecentos e sessenta réis diários! Alexandre, entregando a sua mãe as primeiras seis moedas, das quais deviam duas na tenda e duas no empenho de alguns cobertores, exclamou:
- Abençoados diplomas! Neste país só é pobre quem não teve cinco prémios na Universidade!

[Publicações Europa-América, págs. 139-140.]

Acho o desabafo do Alexandre fabuloso :)
E, mês lindes, que Grande Diferença de Lá para Cá, não foi...?
Eish, uma pessoa inté se espanta com as alterações!
Com a Mudança!
O Portugal de então e o Portugal de agora – Nem Se Compara!


(Ando às voltas com uma ideia: peço uma cunha ou não peço? Peço? Não peço! Pede! Peço a cunha ou não peço a cunha...?)

(Que se dane, logo se vê.)


Bem, malta, vou dormir, qu’isto não são horas.

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