sábado, março 20, 2004

[Escrito há uns anitos.]


A tinta do meu tecto

Vem o diabinho, o meu pessoal e intransmissível diabinho, a outra divindade, não a da certeza, mas a da dúvida.
De modo que ele chega e lança perguntas cujas respostas são elas mesmas.
- Para quê a existência? Para quê o viver?, a vida? Sim, existimos, estamos cá, vivos, a respirar, a exercer os nossos sentidos, na plenitude do prazer. E da dor. E tudo para que ao fim de cinquenta, setenta, noventa ou mesmo onze anos morramos. E a chatice é que nunca se sabe muito bem para onde se vai. Se é que há um lugar para onde ir.
O diabrete remete-se ao silêncio. Hoje não estou para ouvi-lo. Nada disso me importa ou incomoda sequer. Não hoje, nem amanhã. A juventude goza da eternidade enquanto é jovem. Logo, para quê preocupações? A morte por ora não existe.
Ele prossegue:
- Porém, se considerarmos a existência de um Nada posterior, não há lugar a desesperos. O Nada não dói.
Zumbe à minha volta. Eu - indiferente.
- Se assim for, então qual o propósito? Sim, qual o propósito de existir?
Eu - deitado, mãos entre a cabeça e a almofada. Pernas cruzadas. Olho o tecto e tento perceber formas na tinta. Universos. Galáxias moribundas e a nascer. Já sei isso tudo. Primeiro nada se sente. A existência é banal, facto rotineiro, quotidiano. Depois, algures entre o chapinhar de uma borboleta numa gota de orvalho, a linha de um livro, a imagem de um filme e a morte de um vizinho da nossa idade - acontece. O súbito despertar. (O encantamento.) A consciência da nossa consciência. A consciência do eu. Repara diabrete: eu já conhecia isso antes, só não sabia que o sabia. Percebes? A surpresa de me surpreender com o renovado milagre de estar vivo cada dia que passa. Tipo: alguém que se apanha a pensar pensando. (E a surpresa de não me ter surpreendido antes.)
- Mas então qual o propósito?! - grita-me ao ouvido. Sacudo-o para longe. Desvia-se com uma pirueta e senta-se-me no umbigo.
- O ônfalo - diz. - A prova da tua individualidade. De que nasceste. Contudo: para quê? Tanta coisa, criatura, à face deste planeta morre para garantir a vida de outros. Mesmo tu. Sabes a quantidade de irmãos que jamais chegaste a ter unicamente porque o corpo da tua mãe, desconhecendo-o ela, rejeitou os embriões defeituosos? Tanta morte para tão pouca vida.
Cala-se. Escarafuncha no meu umbigo e tira uma pequena bola de algodão. Tento ficar acordado.
O diabinho deita-se de costas e o corpo evolui por cima do meu, embalado como se estivesse no topo de uma onda.
- Tinta - afirma. - Só tinta. Não me ouves? Repara: pessoas adultas que cumprem o seu destino, no fundo o destino que a Natureza lhes deu: procriar. Continuarem a espécie. Animais (em que te incluo), vegetais, todos unidos no mesmo desígnio: sobreviver como espécie. Então... e os que morrem novos? Para quê foi necessária a sua vinda? Não há propósito claro nisto. E até as espécies se extinguem. A humana também um dia cessará de ser. Baratas evoluídas, formigas ou abelhas desenterrarão, quiçá, no futuro, o vosso esqueleto, formulando teorias acerca de uma espécie cuja passagem pela terra foi curta. Se, em resumo, o objectivo de qualquer raça (neste caso, a humana) é posto em cheque pelo conhecimento de que tudo morre... qual é a vantagem em chegar a existir?
«O Deslumbramento.»
- A ilusão do deslumbramento concretizado na esperança da realidade da alma, do amor, dessas baboseiras com que os homens se anestesiam para continuarem vivendo. Para mim não passam de delicados instrumentos com que a Natureza os dotou de maneira a persuadi-los a cumprir os seus planos.
«A Liberdade.»
- Outra ilusão. Outro instrumento.
«O propósito é a própria vida. O propósito é estar cá. E sabê-lo.»
O diabrete empina-se no meu estômago. Caminha, resoluto, directo ao meu queixo, salta para ele e batendo amigavelmente a mão na minha bochecha diz-me, num sorriso (enquanto pisca o olho, abana a cauda e põe a língua de fora):
- És um parvalhão...
E eu vejo galáxias, galáxias, galáxias na tinta do meu tecto.
(- Parvalhão...)

11/2000

Sem comentários: