quinta-feira, junho 17, 2004

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A Marília ficou altamente apreensiva quando lhe revelei o propósito de escrever um livro.
- Estás arrumado – disse. - Vais perder todo o interesse, passarás a investir a tua loucura no papel em vez de a investires na vida. Bastar-te-á imaginar situações em vez de vivê-las. – Abanava muito a cabeça, eu via-a pela primeira vez com brincos. – Vais, vais perder todo o interesse. – E acrescentou: - Sempre adivinhei em ti um grande medo da vida, um grande desejo de escondê-la atrás das palavras, a incapacidade de desperdiçares a tua energia, o desejo de a poupares, nunca percebi bem para quê. E às vezes ouvia-te contar, fingindo-as verdadeiras, certas histórias. Falsas. Em vez de vivê-las, preferias imaginá-las. E agora que vais escrever, pior: necessitarás de economizar todas as ideias, já nem poderás gastá-las conversando com os amigos. Economizá-las-ás não para viver, mas para as investires na escrita. Palavras de papel... Falsas, portanto. Estás arrumado.
Estarei?”

in O Bosque Harmonioso, de Augusto Abelaira (Editora: O Jornal.)