quinta-feira, janeiro 13, 2005

O JOGO

- Vamos jogar. Eu sou o agressor, tu és a vítima.
(Estamos no quarto, ele está sentado na cama. Eu, de pé, começo:)
- Estamos num quarto qualquer. É uma divisão fechada. Não há saída possível. Ou a porta está trancada e eu tenho a chave.
- Escondeste-a.
- Não é preciso. Sou maior do que tu. A chave pode estar ali, à tua vista, em cima da cómoda. Tu não tens força para a tirar e libertares-te. Eu tenho o poder. Eu sou o poder.
- Eu tenho medo. Eu sou o Medo. Tremo. Sou pequeno, magro. Tento abafar o choro. Choro por entre sufocos, aos gaguejos. Bato os dentes. Fungo. Tudo ao mesmo tempo. Abafo um pânico atroz, uma emoção para a qual não encontro nome. Tento não tremer muito para não te despoletar a ira, a força. Não olho para ti.
- Tens medo.
- Tenho.
- Eu gosto.
(Aproximo-me devagar dele. Levanta as pernas para cima, apoia-as na cama e abraça-se a elas. Eu continuo a caminhar com a leveza de um gato.)
- Gosto do teu medo. O teu medo dá-me força. Quase gozo. Tenho os mesmos sintomas exteriores que tu, mas subtis porque me controlo. Quero saborear o momento.
- Não haverão outros?
- Talvez, mas não sei se serão contigo.
- Mas já estiveste comigo antes.
(Paro. Penso.)
- Sim, já. Poucas vezes. Por isso é que o teu medo é tão forte, tão poderoso. Talvez duas vezes.
- Provavelmente eu já conheço a dor.
- É isso. É isso! Já a conheces!
- Mas tens tempo para estares à vontade?
- É possível. Sim. Desta vez tenho tempo.
- Uma hora? Mais?
- Não sei. Continuemos.
- Humm... tenho os braços enrolados à volta das pernas, a cabeça enterrada nos braços.
- Não te vejo a cara, só o cabelo negro.
- Castanho-claro.
- Porque é que eu disse negro?
(O olhar dele alumia-se.)
- Porque está escuro, mas brilhante o suficiente para me veres!
- Estamos na penumbra! Eu prefiro-a?
- Talvez.
- Mas o exercício do poder necessita de luz.
- Nem sempre. Continua.
- Eu avanço como uma aranha peluda, nojenta, devagarinho. Toco de leve no teu cabelo.
- Um choque eléctrico percorre-me a espinha, a carne. Dou um salto. Respiro com mais força, tremo. Suo. Colo-me à parede, vou até à porta, puxo desesperado a maçaneta, mas está irremediavelmente fechada e eu irremediavelmente perdido.
- Aproximo-me, pouco a pouco. É como se, ao ver-te, estivesse a ver um filme. Como se as tuas acções não fosse reais.
- Porque é que dizes isso?
(Paro de novo. Reflicto.)
- Talvez seja o meu estado de espírito. Talvez seja sempre assim: há o gozo da antecipação e em simultâneo existe um distanciamento do que eu faço ou estou prestes a fazer. Não sou eu, é o Outro. Não sou o eu normal, respeitado, respeitável, um homem comum; é o Outro, o homem das trevas, o homem escondido, a habitar esta pele digna que de dia se passeia sem temor pelas ruas. É o Outro. Como não posso ser sempre o Outro talvez exista um clique que actue nestas alturas, um estranho mecanismo psicológico que me faça sair de mim - literalmente -, que faça brotar de mim o Outro, rasgando-me a pele e saindo para a luz da noite, a luz lunar.
- Não acredito. Estás a desculpar-te. Tu és sempre o mesmo. Não te mostras todo à luz do dia por medo das consequências impostas pela sociedade. Tu és sempre igual: estás consciente do que fazes, do que me fazes, consciente do castigo se fores apanhado. Talvez estivesses Mesmo a ver um filme.
(Junto as sobrancelhas.)
- Um filme a sério? Como? Tu és uma criança a sério, preso num quarto a sério, prestes a...
- Espera. Não é isso. Eu sou verdadeiro. Mas porque me confundes com a personagem de um filme?
(Ficamos os dois em silêncio. Algo acorda em mim.)
- Porque já te vi antes num!
- Também já viste outras crianças antes.
- Mas a ti, a ti eu já vi de certeza! Portanto...
- Este pode não passar do primeiro encontro.
- É por isso que eu levo o meu tempo, saboreio cada segundo. Ninguém me vai interromper.
- Tu pagaste por este tempo sem distúrbios.
- Eu paguei por ti. Por isso é que ele, tu não gritas.
- Ninguém me virá ajudar. Já é normal.
- Pouco normal ainda. Foram poucas vezes.
- Poucas? Achas que o terror acaba ao fim de um, dois anos?
(Sinto vergonha. Digo a verdade.)
- Não sei.
- Ele foi vendido por alguém que o conhece, alguém que o devia proteger.
- Tu foste ven...
- Exacto. Eu. Eu. Continuemos. Encolho-me no canto da parede, longe da porta e longe de ti. Agarro as pernas, magras, fracas, ramos quebradiços.
- És moreno, bonito. Cativas-me.
- Mentira. Não me mintas. Nem preciso de ler-te nos olhos. Intuo-o.
- É verdade. Eu... tomo por ternura e amor ao belo, ou desejo tomá-lo, o que não passa de violência. Quero limpar-me da mácula, antes de a cometer. Não é a tua beleza que me impele nem um sentido perverso de ternura.
- Sinto os teus passos avançarem lentamente para mim. Abraço-me mais, escondo a cara, aperto-a com força contra os braços e joelhos.
- Coloco devagar a mão direita sobre a tua cabeça.
- Quase nem respiro. Tenho os olhos fechados com muita força, tal como os dentes.
- Fico assim um bom bocado sem me mexer.
- Só quero que isto seja um sonho, quero acordar, quero acordar.
(Vejo-o a estremecer, os olhos quase desorbitados.)
- É melhor pararmos. Tu não estás bem.
- Não! Continua, continua!
- Ai... eu, eu...
- Puxas-me o cabelo com violência.
- Não é preciso. Estás completamente submetido, sob o meu poder. É tão bom sentir esse completo domínio. Lá fora não é assim, nunca ninguém foi subjugado por mim. É este o respeito que eu quero. Respeito que confundo com dominação. Agora é só esperar mais um pouco.
- Para quê?
- Para tu acalmares. Quando ficares inerte, hipnotizado, não me darás trabalho. Posso fazer o que quiser. Não vais espernear, arranhar-me. Nada. É este o momento que eu quero. Que eu mais amo. A dominação absoluta.
- Hipnotizado... como o rato pela cobra antes de ser comido. Eu fico...
- Inerte.
- ...
- Sem acção.
(Tem os lábios entreabertos e os olhos presos num horizonte imaginário. Gotículas de suor acumulam-se no lábio superior. Respira com menos dificuldade, mas ainda aos soluços entrecortados. A pele da testa está lisa. Eu chamo por ele. Não me responde. Pego-lhe na mão: está como morta, não a prende na minha. Com medo vou para a janela. Vou abri-la, deixar entrar o sol, mas paro um segundo antes de o fazer. Regresso a ele.)
- ... mais vale... não... não... me debater. Termina mais rápido. Eles perdem o interesse... depressa.
- Eles?
- Se eu não me mexer. Se eu não me mexer. É mais rápido, acaba logo. Muito rápido. O pior, o pior é antes, o medo antes. O pior é antes.
(Quero acabar isto agora, não me agrada a morte no seu olhar.)
- Eu pego em ti pelo braço, tu deixas-te conduzir para a cama onde te deito de barriga para baixo e dispo-te as calças e...
- É tudo tão rápido, tão rápido! Mal me lembro. Porque é que eu não me lembro?
- No fim...
- Só me lembro do peso enorme em cima do meu corpo.
- No fim eu...
- Do peso.
- ... limpo-me. E limpo a mão do suor do teu rosto. Pus a mão no teu rosto. Podia ter posto uma almofada em cima do crânio, mas tive medo de te matar. Com a mão era mais seguro. Tu não gritavas, mas eu tinha de ter certeza. Limpo a mão molhada do teu suor e saliva às calças e...
- Vais buscar a chave à cómoda.
- E vou-me embora.
- Olhas para mim.
- Não vale a pena. Já não tens nada para me dar. É um vício. Hoje tomei a minha dose.
- Eu permaneço deitado na cama, nu da cintura para baixo.
- Vamos acabar.
- Não. Eu quero saber o resto.
- Nós sabemos o resto.
- Não sabemos as emoções.
- Vamos parar!
(Quase zangada abro a janela e a luz bate-lhe directamente na vista. Vira o rosto e defende-se com a mão em pala.)
- E agora...? - pergunta-me ao fim de um tempo.
- Agora nada. Agora vamos dar um passeio pelo jardim. Anda.
Fechamos a porta, sem levar a chave.