Capítulo 6 d'A Imortalidade
Sou pela intuição, acredito nas tramas invisíveis, insensíveis aos factos materiais, que nos avisam, nos aconselham sobre o caminho a seguir. Muito mal teria sofrido se tivesse entregue o juízo unicamente aos factos, quantas patadas da vida não teria apanhado.
Decido confiar no meu coração e volto-me para nunca mais retornar. Não me importa que esteja ali, presa. É um monstro e apenas a esse facto darei atenção.
Oiço-a lançar-se contra as barras, agarrá-las e depois, quase a gritar, dizer-me:
- Vais para casa! Fazer a comida ao maridinho! Escrava! ESCRAVA!
Estaco. Encaro o túnel de costas voltadas para ela.
- Limpar as ceroulas, varrer o chão, lavar as janelas! Acender a lareira. Oh, o fogão. E fazer-lhe bacalhau com batatas. Até morreres. Escrava!
- A mim quem me parece privada da liberdade és tu – replico, virando-me, lenta e surpreendentemente sem medo.
- Acreditas? Sou livre.
Revivo a última lida da casa, o cheiro do pó a picar-me o nariz, os vapores da roupa que passei a ferro a subirem-me para a cara, o odor e a textura húmida da roupa acabada de sair da máquina de lavar e o peso que carrego nos braços para a pôr no estendal; as pequenas partículas do Pronto a elanguescerem no ar quando pressiono a lata ao pé dos móveis. Tudo isso se abate sobre mim numa mistura de cheiros quotidianos, rotineiros. Cheiros que poucas vezes o meu marido sentiu, a não ser como espectador ou como aquele que usufrui do trabalho alheio. Ele pouco faz lá por casa, a não ser lavar a loiça em raras ocasiões, sobretudo quando há visitas. A desculpa do trabalho por turnos, que tem de ir dormir, está sempre presente. E eu, com o benefício de trabalhar perto de casa, indo a pé para o emprego, nem sei o cansaço que os transportes provocam. Sim, sou escrava de facto. Mas a culpa é minha. Podia obrigá-lo, fazer greve de tarefas domésticas e ele que se arranjasse. Mas abomino conflitos, prefiro perder as vantagens da assertividade e da autoridade aos benefícios de me fingir de forma constante um ser de temperamento forte. Por isso deixo que ele reine e ganhe a maioria das discussões.
Amo o meu marido, mas ele nunca me compreendeu totalmente.
Há uma parte de mim secreta, obscura, que guardo dos seus olhos analíticos, a parte que sente atracção pelo abismo, que pensa como seria abrir-me às trevas. Abrir-me à noite e à escuridão. Não posso ter este género de conversas com ele. Não as percebe. É demasiado céptico, superando-me. Morrerá uma criatura perfeitamente racional. Sim, sou escrava. Não dele, mas dos meus medos: o medo de sucumbir ao lado escuro de mim e o medo da mudança.
Apercebo-me que ela me olha interrogativa e ansiosa.
Continua.
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