Escrevi o texto abaixo para participar neste desafio do Escreva!
[Não consigo esperar até ao fim para o tornar público.]
O SENHOR PIMENTA
Dia 1
O senhor Pimenta não é um homem apaixonado – é um homem sereno. Hoje, por exemplo, sentou-se no banco do jardim para onde os velhos se exilam (ou para onde os afugentam) e serenamente contemplando o instante no momento em que o era, o segundo no momento em que se fazia (e não em que passava, porque passando deixara de o ser), a vida em todas as suas manifestações no momento em que se manifestava (nem antes nem depois), não se apercebeu que os pombos o usavam como poleiro.
Se ele se deixa ficar ali a noite toda – porque não quer incomodar os pombos – é comum que eles se aconcheguem nas dobras do sobretudo ou perto do pescoço, no interior das abas. De modo que toda a noite o senhor Pimenta escuta um cruu-cruu ininterrupto. Como os pombos já o conhecem mesmo quando passeia, contemplando a vida dessa maneira, mesmo assim os pássaros se congregam à sua volta, seguem-no discretamente.
Hoje, daqui da minha janela, vejo que ficou outra vez ali a noite toda, mas parece-me que são os pombos que o guardam a ele e não o contrário. Porque o senhor Pimenta é um homem Bom. E a bondade vitimiza. A bondade magoa os outros que arranjam maneira de, ressentidos, remeter essa dor a quem lha provoca – fisicamente. Por isso os bons são apedrejados, cuspidos, mortos, insultados. Mas nunca nada de mau sucedeu ao senhor Pimenta. Como se uma capa invisível o envolvesse. Cá para mim são os pombos, são os pombos os anjos que o protegem.
E nunca o vi oferecer-lhes milho.
Dia 2
Hoje vi-o comer algo que tirava de um saco de papel pardo. Fui buscar os binóculos (porque, ao contrário dele, não posso dizer que tenha serenidade e tudo me preocupa, tudo me atiça o interesse). Vi que era milho.
Talvez se queira transfigurar em pombo. Talvez julgue os pombos como os verdadeiros, e incógnitos, budas.
Dia 3
Na Praça, enquanto fazia as compras, observei o senhor Pimenta contemplando de rosto vazio a superfície das águas do rio. Estive ali muito tempo, até a feira terminar, até o sol se pôr – mas não cheguei a vê-lo a andar sobre as águas. Desiludida, retornei a casa e fiz uma canja de galinha, que o meu marido odeia, mas a contemplação (nada serena) do sereno homem que contempla desorganizou-me o dia.
Dia 4
Hoje, pela janela, avistei uma coisa muito estranha. Os pombos empoleirados no ar, em nada. Mas este nada tinha a forma de um sobretudo, de um homem num sobretudo. Era de noite. Talvez eu tivesse sonhado. Quem sabe. Porque de manhã não vi lá coisa nenhuma – nem pombos, nem invisíveis sobretudos. Apenas o jardim vazio de aves.
Tive a intuição pavorosa de que não o tornaria a rever.
Dia 5
Mas de manhã vi-o a pairar do outro lado da janela, seguro pelo bico dos pombos que o amparavam da queda (certamente fatal, mesmo para um homem iluminado) prendendo cada um uma parte do sobretudo. O seu rosto vazio permaneceu vazio, mas aquela mão a acenar-me o adeus enquanto se afastava de costas para cima, para o céu, foi como um sorriso – um sorriso permanente que eu transporto comigo quando vou, por exemplo, para o jardim sentar-me um pouco.
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