sábado, outubro 29, 2005

Um Par de Horas

Ele usa óculos. tem de ser. pitosga, míope, defeito de fabrico. usa chapéus em dias chuvosos. tem internet de banda larga em casa. é bonito. ainda possui os dentes originais. é cliente de um banco qualquer e não gosta de pagar comissões (quem gosta?).
No trabalho dizem-lhe coisas lindíssimas: faz isto, o prazo 'tá a acabar, tens de falar com o cliente, podemos perder a conta, senhor doutor na segunda não posso vir, senhor doutor, a minha mãe está no hospital, doutor, doutor!, o doutor Rosado chamou-o. é urgente. é muito urgente. é demasiado urgente.
Tem um gato. um fabuloso felídio que se julga superior. naturalmente alimenta-o porque o esmaga tamanha superioridade, na verdade inveja-a. seria melhor pago, considera, se fosse tão arrogante.
É bonito, já disse.
Tem o dom da palavra.
Tem um ar intelectual.
Lê muitos livros.
De ficção científica, fantasia e horror.
Vai ao Fantas todos os anos.
Escreve sem erros ortográficos.
Matou a mãe in a freak accident (a polícia ilibou-o).
Teve a primeira namorada aos nove anos. gosta de se mascarar no Carnaval. é mesmo giro, já disse. não se casou ainda porque não calhou. se o pedissem em casamento encolheria os ombros e replicaria: porque não? aceita levemente as coisas, levemente o mundo, a vida levemente não lhe pesa.
Flutua.
Perdoa com facilidade, com facilidade esquece. os amigos lembram-se dele quando precisam de ajuda e isso não o incomoda (que estupidez! A mim incomoda-me!). conheci-o num curso de escrita criativa. estava, hesitante, à entrada, um pé dentro e outro fora, o cabelo mal-penteado e eu se fosse de amores fáceis apaixonar-me-ia no instante. o facto é que sou de amores difíceis e já não tenho onze anos, a Idade das Hormonas Pululantes (ou Saltadoras, escolham).
Segui-o um par de horas. viagem aborrecida. o tipo é chato.

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