terça-feira, dezembro 26, 2006

Bentley Emprega-se

O sacana do Bentley, comummente conhecido por Enraba-Passarinhos ComoTodaAGenteSabe, achou que devia ganhar uns trocos. Eh, uns trocos, diz a encolher os ombros assim muito à velho, à Gajo Idoso que andou a combater no Ultramar (not), a matar pretos e agora o Estado não lhe reconhece valor.
- As rendas, as rendas. Não posso mandar os filhos da puta dos inquilinos para a rua quando não pagam! E eu aqui a passar fome!
(Not.) Mentiroso. Que grande mentideiro. Outros têm esse problema, é vero, mas nunca o senhor Bentley. Inquilino que não lhe pague a renda é alvo de fartote! Ó, o que ele brinca com os canalhas que se alapam no que não é deles.
- Ó, uma preeeeetaaa! - grita enquanto segue a desgraçada da Senhora Inquilina que não paga há três meses porque o marido perdeu o emprego.
"Não tenho culpa que o gajo partisse uma perna e não lhe dessem baixa. Se não pode trabalhar nas obras vá pedir para o Metro!", pensa o canalha.

- Vá pedir para o Metro! - sugere aos berros do alto para a senhora de cor que entra, aflita, no autocarro que a leva para o trabalho nas limpezas.
- Quando é que o teu marido vai pedir para o Metro! - grita ele à janela, seguindo velozmente o autocarro que, por acaso, ia esgalhado naquele dia.
- Esta besta... - murmura o condutor (de bigode).
O senhor Bentley sabe que ninguém dá esmolas no Metro. Olham o ceguinho, a adolescente romena, a ceguinha a cantar e reparam na roupa: tão bem vestido... tão gorda... não deves passar fome... vai masé pedir para a tua terra... só vêm cá para roubar e ainda traz o pobre do miúdo ao colo...
Um gajo preto, grande, sério, de perna partida e muletas não ganhava nem três tostões. O senhor Bentley ri-se. Porque tudo é divertido.
Odespois foi a do segundo esquerdo.
O marido deixou-a.

Grávida. E ela a ganhar cento e vinte contos por mês com renda de sessenta contos. A água a subir. A luz. O passe. O seguro do carro. Vendeu o carro. O bebé a caminho. Pagar a ama. Para ir trabalhar. Para pagar as despesas. Poupar na comida. Fazer sopa, sopa, sopa. Os pais, pobres, lá na terra, que não a podiam ajudar. Os sogros que a detestavam (ai o nosso menino, o meu menino, quem foi arranjar! Se não arranjava melhor! Ao menos uma advogada...!). O marido que arranjou outra. O xanax, o prozac, o trabalho mal feito, a licença de parto durante quatro meses (cinco não podia ser porque os oitenta por cento do ordenado não chegavam para cobrir as despesas), o patrão que se ressentia. A depressão. A depressão.
- E a renda já vai num mês! - exclamava Bentley, seguindo-a pela Baixa, ela a esconder-se, a tentar fugir com a enorme barriga, os olhos baixos, as lágrimas furtivas que escapam ao controlo. Medicamentoso.
O senhor Bentley ria, sorria, gargalhava como um gárgula medieval. Ó, se tivesse asinhas na gabardina! Asinhas pequenitas, de morcego. Branco-sujo. Bonita cor.
- Um mês! Filmes porno! Olha que pagam cinquenta contos por um dia de trabalho! Tenho aqui o anúncio!
E postou-se à frente da mulher em destroços, que contorcia a cara em choro, enquanto lia o anúncio em voz alta para os transeuntes em redor ouvirem. Ela conseguiu fugir para dentro de um café onde o senhor Bentley viu a entrada barrada pelo empregado cinquentão (curiosamente também de bigode), gajo que praticava culturismo desde os dezasseis anos.

- Eh lá, franganote - motejou o Pilinha-Esguia (a alcunha é auto-explicativa, penso) e alçou, guarda-chuva aberto, para o alto. Up-up and away.
De modos que cento e dez contos de rendimento mensal tinham ido à viola. Cantar as fúnebras no cemitério (e hoje que nem era quarta-feira!).
No call-center Bentley aproveita um momento em que os supervisores (ou team-leaders ou lá o raio do nome dos tipos) não estão a escutar as chamadas dos operadores para se divertir um bocadinho.
- Ah não quer? Olha este não quer! É só um inquérito, filho da puta. Cof-cof, sou velhinho, tenho para mais de noventa anos (not), e estou aqui para pagar as despesas da operação à vesícula! Na merda de um call-center! Para mais de noventa anos! Não tens vergonha, caralho? Um velhinho... tratar assim um velhinho... sabes quanto é que os gajos me levam de operação, internamento e custo de apalpanço de enfermeiras mafarronas, sabes?! Para mais de cinco euros diários! Mais iva. Mais inflação corrigida. MaisIstoMaisAquilo. Responde ao caralho do inquérito. Ganho dez cêntimos. Ajuda, dez cêntimos. Uma esmolinha, uma esmolinha sibila o senhor Bentley e a seguir grita. - Anormal! Que tenhas muitos meninos pela barriga das pernas! Estou, estou sim? Está lá? Chatice, a chamada caiu. Muito boa noite, o meu nome é Bentley, Senhor Doutor Engenheiro Doutorado Bentley (e só estou a fazer isto como trabalho de campo para concluir a Tese) e nós estamos a fazer um inquérito para determinar o motivo que o levou a anular a apólice do automóvel.

- Mas eu não desisti de seguro nenhum! Não me diga isso que eu preciso do carro para trabalhar! Não me diga isso! Se acontecer alguma coisa não tenho seguro.
- Ah, pois não, não tens. Olha, amor, azar. Azar fodido. É a vida! É a puta da vida. Estão a lixar-te, totó.
Click.
- Hi, hi, hi - ria com riso de sardanisca.
- É mentira. Não é para inquéritos. É do SIS e andam-te a SEGUIR - diz quando apanha um cliente mais paranóico. - Andas a fazer downloads de pornografia infantil, não é, lindo? Mas se fores Deputado Parlamentar não há problema! Se não fores, concorre nas próximas eleições e oferece electrodomésticos. Preciso de um moinho de café. Alô, alô? Mal-educado. Desligou-me nas fuças. Fuças não, que eu não tenho fuças: tenho fronha.
Durou uma hora no emprego. Despediram-no mal o sistema de escuta voltou a funcionar. Juntamente com a hora de formação (paga a cinquenta cêntimos), ganhou três euros no dia.
- Fortuna. Vou ser empregada a dias. Ganho seis euros e meio à hora - pensou, de modo brilhante.
E foi logo comprar o aventalinho e o espanador.
Depois foi ter com os Velhos para lhe darem o lugar da criadita francesa, mas estes recusaram. Detestavam a bisca.
- Preconceituosos...

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