quarta-feira, dezembro 06, 2006

A Morte Chegou à Cidade com uma Carrada de Pulgas

[É um título bueda grande. Apeteceu-me. Singularidades da autora que pede ao leitor a bondade de as aceitar. Ou podes ir ler o Moby Dick.]

- Parece mentira, mas este repórter tem uma coisa a reportar que é... inaudita, inédita. Singular. Peculiar e Particular à classe política.

(O repórter continua a reportar.)
- Uma Carrada de Pulgas atacou o hemiciclo! Segundo testemunhas locais esta manhã um exército de pulgas marchou rumo ao Presidente da Assembleia da República e atacou o Doutor Vasco da Rama.
- Senhor Doutor - corrige a telespectadora Eunice.
- Ele tirou o curso de medicina onde?
- És mesmo sacana, Célia. Não se pode ver as notícias contigo. Começas logo a implicar.
- Se é doutor deve ter cursado medicina em algum lado. Peraí... Vasco da Rama. Não é aquele que não foi acusado em relação ao Caso do Colégio?
- 'Tás a confundir com o Farruscas. Ou o Veloso.
- Não, não. Esses foram pronunciados arguidos. O Rama nem isso! O nome dele foi referenciado no julgamento e até agora... népias. Continua lá no alto a perorar. Merece a carrada de pulgas. Espero que fiquem gordas de sangue.
(Célia reflecte uns segundos.)
- Não. Espero que não tenham matado a fome e avancem para os outros!
(Eunice abana a cabeça com enfado.)
- Parece que vais ter o teu desejo - diz ela.

(O repórter reporta.)
- Caros telespectadores! É incrível! Não imaginam o caos. A morte dá caça aos políticos do hemiciclo na forma de uma carrada de pulgas! Os Servidores da nossa Nação...
(- AH! - diz Célia de modo cínico, emitindo um som de desprezo e descrença através dos lábios.)
- ... estão a ser perseguidos viciosamente! Mas apenas eles. Os civis são poupados! Eles... sobem para as bancadas, pisoteiam-se uns aos outros na vã tentativa de escaparem à morte certa! E, não, pa... parece que. Sim, é verdade. Ao longe vejo uma aglomeração de lesmas que lentamente se juntam às pulgas! Ó, meu Deus, o Primeiro-Ministro! Foi, foi... Atacado pelas lesmas que o impedem de mover-se! As pulgas saltam e, e, chupam-no até ao tutano! Espero que a namorada não esteja a ver isto.
[Nota da autora: nada temeis, leitores: ela estava na Baixa a comprar sapatos.]
- É mal empregada para o gajo... - opina a má (a Célia).
- Ó! Tu, tu! Tens com cada coisa! Mas é mal empregada porquê?!
A interpelada encolhe os ombros.
- Sei lá. É. Gostava de lhe ver a carta astral, os aspectos entre Neptuno, Vénus e Plutão...

(O repórter já não reporta: o homem grita.)
- O nosso Primeiro-Ministro ficou reduzido a uma carcaça de pele! As... as pulgas avançam! Caros telespectadores, hoje é um dia Negro para a Nação! Para a nossa Nação Bem-Amada!
- AH! - penso que nem vale a pena dizer quem é a dona do berro. - Este parece que é jornalista do Estado Novo.
- E tu a dar-lhe... - murmura Eunice, sentada ao seu lado no sofá.
- Ainda queres entrar na política...? Vai, vai. Mas não podes é entrar na lama. Senão o papão vem e come-te! Ah, ah, ah!
(A amiga não responde.)
(O repórter rapidamente recobra o ânimo quando vê um deputado do PSD a trepar uma coluna.)
- Vamos tentar... en-entrevistar o deputado. Senhor deputado, como se sente? Quer dar uma palavrinha para a RTP? Um comentário!
- Ó Meu Filho da Puta, eu sou lá o Marcelo Rebelo de Sousa?! Esse está ali mais à frente. Vai chatear-lhe os colhões a ele!
- Mas esta é a sua oportu...
- AAARRGHHH!
(Silêncio.)
- O deputado está aos pés da coluna, sendo comido por pulgas, percevejos e picado por vespas.

Murmura:
- Ó Antunes, vira a câmara para aqui: vamos mostrar em tempo real o que está a suceder.
(Silêncio, à excepção dos gritos de fundo acompanhados do tropel de passos a tentar escapar ao inevitável destino. Durante trinta segundos a carnificina, o desmembramento de um deputado do hemiciclo português preenche o écran. De súbito carreiras de formigas negras aparecem para levar o saque para o formigueiro.)
- Que Mais
podemos dizer, caros telespectadores - diz ele com a voz tremida já com medo que a bicheza, olhando o fato, o confunda com um Senhor Doutor Deputado. - A imagem vale mil palavras. Corta, corta. Vamos lá fora apanhar ar.
A amiga (a boazinha, a Eunice) levanta-se e desliga o aparelho.
- Eh! Eu 'tou a ver isso!
- Só gostas de desgraças, tu - e torna a acendê-lo. - Vou ao café.
- Vai, vai.
Célia recosta-se no sofá com os braços cruzados e a testa franzida, atenta ao minúsculo pormenor. Não é todos os dias que uma carrada de pulgas (ninjas, atreve-se a pensar) e companhia dizimam o Parlamento. 

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