quinta-feira, junho 19, 2008

Histórias de Amor

- Não sei viver histórias de amor porque é difícil vivê-las. Medo, medo do outro, medo do medo. Passar calmamente a vida inteira dedicada à auto-análise e ao cultivo de rosas sem espinhos.
- O amor é difícil viver? Porquê?
- Porque sim. Há quem se entregue. Os idiotas, esses entregam-se. Que o coração seja pisoteado e publicamente sangre, em forma de humilhação, não se importam.
- Há riscos.
- Sim, para quê corrê-los.
- Não acreditas no amor?
- Não sei. É uma febre passageira. A pulga que morde e nos infecta. É um estranho e afectuoso bicho a devorar-nos as entranhas e achamos delicioso o fogo que nos arrebenta e consome. Sim. Há riscos. Ah pois, acredito pois claro.
- Alguém que não acreditando, crê; alguém que vê e não arrisca.
- O medo é imenso, maior que o fogo do amor, o risco de ser consumido, devorado em labaredas de paixão que deixam ruínas e destroços dos quais não se pode reconstruir a casa, os alicerces que antes reinavam.
- Fora com o velho, viva o novo.
- Não há material suficiente nem para uma reles cabanita.
- Vive perigosamente: na rua, ao sol, à chuva. Ao frio.
- Com o coração amarrotado e desfeito?
- Com um corpo vivo e livre. Vivo e livre.
- E o espírito morto?
- Ah, isso já é escolha. A tua escolha. A tua decisão.
- É suposto que abra o peito a outra humilhação e dor?
- É! É isso sim, é esse o caminho!
- Só se formos parvos.
- Eu, por exemplo, fui parvo uma vintena de vezes. Só me lembro dos momentos bons. O coração é um saco de memórias onde guardo as boas, a felicidade, a alegria, para entregar quando morrer a deus com um muito obrigado por me ter deixado vir à terra para ver o meu coração esfacelado pelas almas que amei e me amaram a mim. Um muito obrigado, deus, pá, és um tipo porreirinho. Tens um cigarro?
- Quem, eu ou deus?
- Deus, é claro.
- Então a nossa missão na vida é sofrer.
- É! Com alegria! E depois parar de sofrer e sorrir e dar mais, dar mais do que se recebe.
- Isso é perda de funções mentais. Uma pessoa que ama, ama e não recebe nada em troca é parva se, em troca de dor, indiferença e humilhação, dar mais ainda.
- Não, o amor não exige troca. Quem ama ama. Amar é uma acção de alma solitária. Não precisa de outro para amar. Não precisa de reciprocidade.
- Precisa.
- Não.
- Precisa.
- Não.
- És burro.
(Silêncio.)
- Muito burro.
- Hum, mas tive uma vintena de vezes com o coração fora do peito, a apanhar ar e a receber os raios do sol nos ventrílucos. E tu, há quanto tempo não o deixas sair dessa caixa escura onde o amordaças e amarras? Quando morreres vai estar murcho e não vais ter nada para oferecer a deus a não ser uma saca velha minguada e borolenta. É muito triste, morrer sem nada para devolver à Fonte. É mais triste que ver o coração pisoteado e pisoteado. Porque tem sempre remendo. Mas da morte não há remendo e se sais da vida com um saco absolutamente seco, árido e vazio... então já não tens remédio. (Silêncio.) Dá-me outro cigarro, se faz favor.

(Deu-o em silêncio de olhos fixos e penetrantes como se estivesse concentrado num dos grandes enigmas da história, de importância capital, ressentido por ver-se obrigado a trabalhar nele pois era tempo perdido: nunca ninguém o resolvera. Deram-lhe o nó górdio para deslindar como prova de exame final e proibiram o uso da espada. Umma perda de tempo, uma perda de tempo.)

E do peito do que tinha o cigarro aceso ascenderam gotas de sangue à camisa. Era o coração a sair porque tinha intuído a presença de uma mulher bonita, no fundo, ao pé das janelas, na rua. Estava na areia de pés descalços com as unhas pintadas a vermelho, olhando com gulodice os bolos no expositor.

(Escrito a Dezembro de 2007.)

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