domingo, agosto 14, 2005

AUTOBIOGRAFIA INCOMPLETA


Gosta de livros estranhos, esquisitos. Tem por hábito tomar banho. Tem [teve] um gato que não é [era] dela. Fala de si na terceira pessoa. Gosta da Britney Spears. Do Brad Pitt. Tem ódio mortal a Angeline Jolie por causa do Brad Pitt. Gosta do som e cheiro da chuva. Gosta do som e do cheiro do mar. Pode estar muito tempo, alheada, a olhar para o vazio, sem fazer nada. Não gosta que a chateiem. Detesta que apareçam sem avisar. Tem um grande sentido de justiça. É mais casmurra do que sei lá o quê. Já mencionei que adora o Brad Pitt? Devia ler mais. E escrever também.

Tem pretensões messiânicas. É morena. Tem a pele branca, mas na praia o sol tinge-a de vermelho. Tem dois pares de patins. Não tem certezas políticas, religiosas ou espirituais. Acredita no respeito por todos. Aprendeu na primeira classe que não se responde com “hã?”, mas “diga”. Detesta matemática. Abomina contas. Já apanhou duas multas. Já teve um Opel. Acha que a escola é uma perda de tempo. A escola a sério começa cá fora, considera. Gostava de ter aprendido latim em pequena por causa dos benefícios linguísticos. O seu português, hoje, seria superior. Gostava de ter tido lições de ballet e de piano. Gostava de ter tido o papagaio de cauda vermelha que viu uma vez, em criança. Gostava de ser mais alta. O seu ídolo de infância foi o George Michael, mas congratula-se, em adulta, por não ter sido o Michael Jackson. Basicamente o seu destino, aqui, na Terra, é o de Procurar. Agora o quê – não me perguntem. Eu sou apenas o narrador e estou quase a entrar de férias.

Acredita nas maldições do fogo eterno. Not. Crê-se iluminada, excepto quando a luz falha. Nunca gostou de bife de porco. Quer saber quando diabo o carro a ar comprimido será comercializado em Portugal. A cor favorita é o rosa. A sobremesa preferida é o pudim. Tem alergias. Ao pó, aos ácaros. Tem primos e primos. Tem questões consigo mesma. Nunca experimentou drogas, para sua grande pena, nem um reles charrozito. Não fuma (vide: alergias, em cima), bebe água. Costumava roubar fruta em criança por ser divertido. Gostava dos baloiços. Teve várias paixões. Teve alguns animais de estimação. Gosta de comprar cadernos A4 de folhas quadriculadas e canetas de ponta fina, cuja espessura seja preferencialmente a de 0.1. Aprecia muito a rotring xonox, mas acha-a demasiado cara, porra, vão roubar para a estrada. Sabe que não se pode ter conversas inteligentes com fanáticos, mas em ocasiões raras não se contem – e arrepende-se depois. Acreditou em Deus até aos onze anos. Hoje é agnóstica. Não crê em dogmas. Tem pena que não haja real igualdade entre os sexos. Profere sarcasticamente para si o dito: “O amor é lindo.” de cada vez que lê no jornal a notícia de mais um assassinato de outra mulher perpetuado pelo marido, ex-marido, companheiro, amante ou namorado ou ex-namorado. Só se sente bem com a verdade. Sente que biologicamente a natureza a impediu de aprender a mentir de modo diligente. O mundo é dos espertos, reconhece, com pena, mas depois é de quem?, pergunta-se. Gostava de ser bué rica. Gostava de ter lido muitos livros em pequena, mas não havia dinheiro para livros. se a tal história da reencarnação for séria, já decidiu: será homem na próxima vida. Todo bom, todo giro. Provavelmente gay. E astronauta, se poder ser. Gosta muito do cheiro do pão acabado de fazer. Odeia festas. Preza a liberdade. Não gosta que a obriguem a nada. No passado escreveu poemas. Não durou. Não percebe o porquê de estarmos aqui. Não podíamos aprender de outra maneira? Adivinha comportamentos, intui futuras situações, mais por obra e graça do bom-senso do que por habilidades psíquicas. Mantém para si as sentenças porque não quer arranjar problemas e o “Eu não disse? Eu não te disse?” possui o condão de irritar os outros. É Leão com ascendente em Escorpião e lua em Sagitário. Os escorpiões são muito vingativos. Não a lixem. Ela vai lembrar-se Sempre. Não perdoa – afasta-se. Exige respeito. Abomina secas. É impulsiva. Às vezes perde a paciência. Escreve melhor com raiva. Tem o secreto desejo de um dia ganhar o Nobel. Ou o Ignobel, tanto faz. O Óscar é que não. Tem pena de não ter lido a obra completa de Camilo Castelo Branco na infância. Acha o Brad Pitt uma brasa (o narrador abstém-se de comentar porque é macho, macho absoluto). Considera a lei do aborto em Portugal uma vergonha aviltante. Tem maior simpatia pelos comunas, mas depois lembra-se da Rússia, da Cortina de Ferro, da China e retém a respiração. Sente no mais íntimo de si que o Poder não vale nada, não adianta nada, o único uso que pode ter é o de ajudar o povo, missão eminentemente impossível porque todo o poder corrompe, logo a sua missão principal é por sua vez também corrompida. Às vezes pára para ver insectos no meio do caminho. Ou flores. Ou observar andorinhas.

Está farta de mandar fazer as bainhas às calças. Não sabe croché. Nem malha. Não gosta de arrumar, passar a ferro, limpar vidros. Gosta de ver filmes de terror, mas dos bons. Sonha demais. Pensa demais. Tem demasiados signos no elemento de fogo. Falta-lhe o elemento terra. Tem uma natureza idealista. Mas depois a realidade impõe-se na sua visível crueza e ela suspira, encolhe os ombros e desce a cabeça. Não é romântica. Acha as cenas românticas uma parvoíce. De facto, irritam-na. É céptica e ingénua. À vez. Gostava de saber ler música. Não tem médico de família. Tirou a carta aos vinte e um anos. Não tem irmãos. Tem duas avós vivas. Uma toca bateria nos Xutos e Pontapés. Not. Acha os cuidados da saúde mental em Portugal uma farsa. Não tem grande pachorra para miúdos. Ok: nenhuma. Acha que ser mulher é o mesmo que ter um carro que tem de ir ao mecânico todas as semanas. Dá um trabalhão. Pergunta-se amiúde: como é possível existir tanta gente estúpida neste mundo? Pasma-se. Alegra-se. Alheia-se. Passeia-se. Gosta de passear em grandes espaços verdes, por debaixo da sombra das árvores que, juntas e paralelas, formam avenidas. Gosta de estar sozinha. Sabe ouvir. Às vezes chateia-a que a procurem só para isso. Nasceu em França. Tem familiares e amigos no estrangeiro. Visitou até à data Espanha, França e Suiça. Gosta de saber segredos e de ver os bastidores do que quer que seja. Gosta de conhecer aquilo que não é mostrado ao público. Gosta do fim-de-semana e preferia que durasse três dias. Não vê as novelas da TVI. Nem o Herman. Gostava só de comer comida orgânica. E de ter painéis solares em casa. E um reservatório para armazenar água da chuva. E de aprender a cultivar legumes. Quer ter best-sellers internacionais. Não aprecia gente ruidosa, mal-educada e preconceituosa. Acha a Sheryl Lee um espanto, linda. Gosta de filmes de vampiros. Não tem dvd e tem pena. Não tem telemóvel. Não usa saltos altos. Por causa das costas. E dos entorses. Acha o preço das casas em Portugal um roubo descarado feito às claras. Chega sempre a horas. Ou adiantada. Não gosta de futebol, mas é do Benfica. Adora música. É preguiçosa. Analisando a sua vida sob a perspectiva católica conclui-se que acabará, decerto, no inferno. Acredita nos seres humanos – nas suas falhas. Gostava de conhecer os Neandertais. Adora o Bugs Bunny. Gosta de filmes com legendas e de ouvir as vozes originais. Gosta de tomar banho e de água quente. Quase morreu quando nasceu, não respirava. Começou a falar aos quatro anos. Cortava o cabelo às Tuchas. Na infância gostava de filmes de detectives. Adorava Hitchcok. Não conta muito sobre ela. Esconde bastante. É desconfiada. E paranóica. Já teve mais medo do dentista. Gostava de saber voar. Gosta de ser muito bem tratada. E de estar confortável. Usa óculos. Acha o assassinato de homossexuais por serem homossexuais uma abominação. Acha igualmente abominante o encarceramento de crianças. Estranha as pessoas boas morrerem cedo demais. É egoísta. Dá sangue. Nunca partiu nenhum osso. Não estranha o estado do mundo – só a entristece. Tem um problema nos olhos de que nunca mais se vai livrar, disse o médico ao fim de meses de tratamento. Fixe, pensou ela com cinismo. Acha o sistema de justiça, político e de saúde em Portugal uma farsa. Perpetuada no tempo. Quem é que leu isto tudo até ao fim?

7 comentários:

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Anónimo disse...

Eu li:
http://usearteartesvisuais.wordpress.com/

Ezequiel Coelho disse...

como poderia deixar de ler?

Nota:
Momento 1
Há cerca de três meses, encontrei uma referência ao Sr.Bentley - li com prazer o capítulo que aqui disponibiliza e encomendei um exemplar na FNAC (porque estava esgotado).

Momento 2
Por outras simpáticas razões, travei conhecimento com o Blog "Cova do Urso" e com o excelente António Rosa.

Momento 3
Só agora me apercebo de que a Ágata/Dunyazade é um Ser também atento e conhecedor das questões astrológicas.

Muito prazer em (pre)conhecer!

Dunyazade disse...

Olá Ezequiel;

e bem-vindo!

Espero que o livro lhe agrade :)

Rui Ramos disse...

Eu também li até ao fim. Bela apresentação. :D

Janaina Luc disse...

Gostei muito da clareza que tem de si, gostei de você e me identifiquei e... escreves bem. Abraço!

Isabel Guerreiro disse...

Também li até ao fim :) interessante "pessoinha" no bom sentido!! Note-se!! a verdade é que temos muito em comum. Tu argumentas e expressas-te muito bem... adorei... gosto imenso de astrologia, bom sou fraca no assunto, mas gosto bastante, o problema é analisar, tem muita matemática e confesso que calculo não é comigo...deve ser pelo meu mercúrio conjunto ao sol, coitado ficou queimadito.

Bom vou seguir-te, beijinho e continuação de boa escrita ;)