quinta-feira, julho 18, 2002

:: Escrever sobre o quê? ::


Está um calor do caraças! Porra...! É nestas alturas que começo a sentir saudades da chuva. Isto do blog é giro, é um género de escape, de traição quase desculpável feita ao dever, à rotina obrigatória. Devia estar ocupada noutra coisa (no estudo *argh*) e não aqui.

Que se lixe. Chumbo.
Adiante. ‘Bora falar de coisas mais agradáveis.
(Brad Pitt! Brad Pitt! Brad Pitt!) Hehehe…

Não sigo, sistemática, uma fórmula. Ou melhor, não abordo de modo linear as diferentes fases da construção de uma narrativa ficcionada. Primeiro porque não sou capaz, segundo porque a própria estrutura do blog não o implica nem o obriga. Aliás, os blogs possibilitam-nos a chance de escrever uma obra sem o notarmos. Vamos devagarinho, capítulo a capítulo, “post” a “post” (esta palavra ainda há-de entrar no dicionário, devidamente aportuguesada, aposto).

Hoje vou falar sobre o tema. O autor (considero existir diferenças entre autor e escritor) decidiu escrever. E pergunta-se: sobre o quê? E depois de descoberto o tema, como trabalhá-lo? O tema é sempre um tema presente, uma história conhecida. É assaz difícil narrar a vivência quotidiana de um esquimó quando se é escandinavo; ou relatar o dia a dia de uma dona de casa com cinco filhos, um genro, uma sogra, um hamster e um canário quando nunca na vida se lavou um par de meias. O melhor é começar pelo que sabe, pelo que conhece, pelo que vê. Não acredite que a sua vida é corriqueira, aborrecida e que ao fim de dois parágrafos o leitor irá inevitavelmente cair no sono. Antes de tudo – valorize-se! O que para nós parece normal e sem mistério pode para outros ser a abertura a um mundo distinto. Vamos supor que, quem me lê agora (o anónimo do lado de lá do monitor), pertence à “corriqueira” classe média de um dado país ocidental e democrático.

Suponhamos também que possui carro ou tem a carta e só de vez em quando guia o automóvel do irmão (mas antes há que lhe descobrir o esconderijo da chave e depois fugir, pôr o carro a trabalhar e pirar-se antes que ele o fisgue). Vamos admitir que é maior, vacinado, teve sarampo na infância, partiu uma perna, os colegas escrevinharam coisas giras no gesso, você guardou-o durante uns tempos e agora não sabe por onde pára; frequentou a escola, estudou coisas horroroooosas (das quais não guarda na memória a vaga lembrança); fez amigos; não fez inimigos, mas houve malta que embirrou consigo e vice-versa; marrou que nem um possuído para conseguir entrar na universidade; teve aí o seu primeiro amor a sério (ou o segundo, ou o 19º).

Depois arranjou um emprego, uma casa, talvez o seu irmão um dia lhe tenha aparecido à porta a chorar baba e ranho porque apanhou em flagrante a legítima com o guarda nocturno. Talvez um dia tenha tido um acidente, grave o suficiente para o fazer reconsiderar a sua existência. (Ou não.) Sente-se confortável e desconfortável com esse conforto. Pensa: mas que porra de vida! O que é que eu posso tirar daqui!, dela, o que posso eu tirar de mim próprio que cative outros? Que desperte o interesse dos leitores? Bolas, o 007, esse sim, é que tinha uma vida do caraças! Com uma vida daquelas podia-se escrever três dezenas de livros! A minha é tão chata, tão normal, tão sem problemas nem tragédias (só aqueles probleminhas menores que irritam) que terei de ir lá fora buscar inspiração para uma história decente, pensa.

Mas pensa mal.

Acha que tem uma vida regular? Faz ideia, por esse mundo fora, de quantas pessoas tiveram acesso à escola, à vacinação? Quando era pequeno, teve de trabalhar para ajudar a família? Poliomielite, por exemplo, no seu meio tem quase o estatuto de lenda, mas noutros meios existe ainda.

A sua vida para um miúdo que viva no Ruanda não é normal. É paradisíaca. (Se miúdos do Ruanda terão algum dia acesso ao que você escreve é outro assunto e talvez um dia o trate aqui.)
O seu quotidiano, para uma mulher da Arábia Saudita ou do Afeganistão, tem laivos de fábula. Sabe como é o dia a dia de uma mulher árabe da Palestina? Acha que ela sabe como é o seu?

Nós não somos “normais”, “aborrecidos”, “corriqueiros”. Somos diferentes, multifacetados. E é a nossa diferença que devemos imprimir à obra que tencionamos escrever. A nossa diferença. Porque a nossa diferença conta.
A sério que conta, acredite.

Por hoje paro. Vou experimentar o método de não dizer tudo, largar o capítulo a meio e deixar o resto para o dia seguinte (ou semana, mês... isto é por fases, hehe...)

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