terça-feira, novembro 25, 2003

Pena de morte: apdaite.

Vi os testemunhos de duas juradas que decidiram
dar a pena de morte ao John Allen Muhammad, um dos (alegados - palavrinha tão bonita: a-le-ga-dos)
snipers de Washington. Uma, ‘tadita, estava em lágrimas porque por causa da decisão
os filhos nunca mais iam poder ver o pai. E ela sabe o que isso significa porque
ela própria tem filhos.
Pergunto: ah sim? Ai ela sabe? Se soubesse tinha dito Não. Porque este tipo de
saber tem-se no coração. Sinto um nojo por esta malta de Apurada Sensibilidade e
Consciência e Cumpridora e Boa Cidadã. Imagino-me no corpo dos réus, a gritar para
os que acabaram de decretar a minha morte: Filhos da Puta! Assassinos de Merda!
Virei Do Inferno Todas As Noites Para Vos Atormentar O Sono Até Ao Fim
Dos Vossos Dias!
Se aquela cabra loirinha, de lindos olhos azuis, soubesse mesmo o que era tirar o
pai aos filhos não teria decidido pela pena de morte. Penso nestas coisas
e sinto uma raiva a crescer dentro de mim. E imagino: um dia os filhos deste homem
que certamente morrerá (os EUA são tão competentes, não há recurso
que safe os gajos, ao contrário de um país que a gente cá sabe) vão bater-lhe à porta e,
suponho, dizer-lhe algo deste género:
- Olá, eu tenho 15 anos (ou 20 ou 30) e decidi este ano visitar os assassinos do meu
pai. Queira fazer o favor (o obséquio) de chamar os seus filhos. Olá. Olha para a
senhora tua mãe e lembra-te, ao almoço e jantar, que de facto é uma assassina
e me tirou o pai. Podia ter escolhido outro castigo, outra punição, mas a pena
escolhida castigou-me a mim e aos meus filhos que nunca conhecerão o avô.
Castigou todas as pessoas que eu conheci e conhecerei na vida porque, embora
não pareça, há uma parte de mim que falta, parte que o meu pai me teria dado
se não tivesse sido morto por, entre outros, a tua mãe. Sigo na vida com uma fenda, uma falha cá dentro e essa falha afecta outros, percebes, meu lindo? Lembra-te: quando
a tua mãe te afagar, recorda que são os braços de uma assassina que te abraçam
ou as mãos de um carrasco que te limpam as lágrimas. Sim? Obrigado por este
momento. Adeus, vou visitar os restantes jurados.
Era o que eu faria. Quero pensá-lo, pelo menos. Quero pensar que ao fim de anos
e anos e anos de sofrimento convocaria recursos dentro de mim e iria visitar Todos
os que tivessem contribuído para a morte do meu pai (salvo seja): jurados, juízes, acusadores, governadores ou presidentes que não tivessem usado a possibilidade
que tinham de salvar a vida de um ser humano.
Aliás, será que os filhos crescidos, órfãos feitos pelo Estado, não fazem estas visitas?
Será que os jurados, juízes, etc., não têm insónias uma vez por outra a pensar nestas
crianças que talvez um dia lhes venham bater à porta pedir explicações?
Era lindo, não era? Eu acho que sim. Toc-Toc. Quem é? Bom-dia, não me conhece, mas há 20 anos atrás a senhora decidiu matar a minha mãe. Quero informá-la das consequências do seu acto.





Pena de morte. Pensamentos dispersos. Ou: contributos para (parece mais intelectual).

- Ao matar um ser humano para castigá-lo pela morte de outro entra-se em paradoxo. A razão perde a lógica. O justiceiro torna-se assassino.
- Ao matar uma pessoa corta-se qualquer possibilidade da mesma evoluir, perceber os seus erros. Essa pessoa não poderá mais contribuir para os outros.
- Mata-se para castigá-la e, empiricamente, evitar que ela volte a magoar, a causar mal a outros seres humanos. Pergunto: como o faria se já está presa?
- Essa pessoa tem família. Muitas vezes filhos. Não se mata apenas o assassino: mata-se o pai desses filhos, o marido, o amigo. É justo castigar os filhos pelo mal dos pais? O teu pai era tão mau (para os outros, não para ti) que to vou tirar. Não me interessa se precisas dele ou não para te transformares num cidadão pleno (em qualquer área da tua vida, incluindo a emocional).
- Quem o mata julga-se Deus. Não é. Não existe ninguém à face desta miserável/maravilhosa terra que seja superior a outra criatura humana. Ninguém, seja lá a razão que tiver, tem o direito de tirar uma vida humana.
- Quem o fizer irá, acredito, inevitavelmente, encontrar a pessoa que condenou à morte. E terá de enfrentar a vergonha. E, espero, será obrigado a sentir todo o mal que provocou. Nisso consiste o inferno (suponho, presumo, desconfio): experimentar na pele toda a minúscula dor que fizemos sentir aos outros.
- A única coisa que me causa grande orgulho em ser portuguesa é não termos pena de morte. Acho que o restabelecimento da mesma seria o único motivo que me faria publicamente manifestar-me.
- Matar é errado. Honestamente pensava que todos o sabiam.
- Em posição de poder, se me apresentassem mil Hitlers, com contagem de cadáveres proporcional - quero pensar que seguiria os meus princípios. Quero pensar que teria essa coragem. Quero pensar que seria incapaz de me afundar no ódio, na raiva, na vontade vingativa.
- Às vezes tenho a impressão que, a ser possível, aqueles que condenam outros seres humanos à morte, matá-los-iam um milhão de vezes. Over and over again. Tenho a impressão que se pudessem dar essa dor aos condenados - mil vezes matar-te e ressuscitar-te para te matar de novo - não hesitariam.

(Work in progress.)

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