sexta-feira, setembro 09, 2005

SPY





Faço a minha ronda habitual. Binóculos poderosos. Vidros fumados e muito tempo livre depois da reforma. Observo a passarada humana. Têm penas, como as aves. Penas e cuidados. O miúdo do 1º andar, loiro, não pára quieto. Os pais admoestam-no em russo ou ucraniano, nem sei. Põe-se em frente à máquina de jogos e consegue estar no mesmo sítio duas horas seguidas. Os pais estão sentados na cozinha, ao fundo, a mãe com a mão preocupada a amparar o rosto enquanto vê a conta do telefone. O pai faz torradas. Tem a barba por fazer e um ar cansado. Na casa ao lado a Adriana mira-se ao espelho trezentas vezes antes de sair, compondo e descompondo o cachecol, o chapéu, o cabelo e a maquilhagem, exibindo o corpo magrinho no espelho do corredor. Às vezes olha para a barriga e faz um trejeito crítico com os lábios e o nariz. Depois arranca para a porta da saída. Está na rua em menos de dez segundos. O namorado espera-a. Tão subserviente. Apanho a irmã mais velha a olhar o quadro e adivinho que os nossos pensamentos se coadunam. Helena, a mãe das duas, tem o roupão mal atado e cara de choro. O marido deixara-as. Fugira com outra mulher. Eu vi a mala feita, vi-o a sair, os gritos mudos da esposa. Adriana não sabia ainda. Helena suspirou e foi para a sala com a cafeteira fumegante. Pousou-a na mesa de vidro. Descaiu o rosto e inspirou profundamente.
Pegou na cafeteira e deitou o café na chávena. Como habitualmente umas gotas caíram no pires. Teria de se habituar a tudo de novo. Então começou por sentar-se numa cadeira.



[Escrito para este desafio. Têm até dia 12 para participarem também.]

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