Pensamentos sobre a escrita e reescrita
20 de Abril
Estou no 3º capítulo. Há dez. A rever. A revisar. A corrigir. Vou demorar uma data de tempo com isto. No fim pôr o manuscrito de parte, a descansar, e tornar a olhar para ele daqui a uns meses. Dois? Mais? Menos? We’ll see.
Notas a reter. Tenho feito pesquisa sobre como fazer a reescrita da primeira versão. Naturalmente as fontes são todas americanas e inglesas. Nada como os americanos para partilhar os segredos da profissão. They are givers. We are keepers. Of secrets. Os portugueses não partilham nada com ninguém que não pertença à sua “tribo”, seja ela de sangue, política ou clubística. Eis o segredo do nosso insucesso. Guardamos tudo, não damos nada, logo, os outros fazem o mesmo. Ou, para ser clara, se não damos não podemos receber porque a porta não está aberta. E quando a porta está aberta circula-se em ambos os sentidos.
Isto não é evidente?
Esconder, esconder, guardar, guardar. Eis a alma lusitana.
Não há fontes em português, pelo menos no Google, de como fazer a rescrita de um livro. Dicas. Bom, para dizer a verdade, nem me incomodei a procurar. Mas vou fazê-lo. Talvez esteja enganada desde a última vez em que pesquisei.
Os escritores portugueses não partilham aquilo que sabem.
Guardam o conhecimento de como aprenderam a escrever, os segredos técnicos do ofício, como o avaro guarda o dinheiro velho e engelhado debaixo do colchão gasto e mofado.
O que estou a fazer no momento? A ler e a corrigir erros gramaticais, a ver quais os termos que se repetem, a ir ao dicionário em busca de outros, a ver quando, na prosa, as palavras rimam e a trocar um vocábulo por outro para evitar isso. Às vezes leio alto para sentir o ritmo, as repetições, etc. Os erros apanham-se mais depressa. Vejo as palavras que estão ali a mais. Corto. Tento ser sucinta. Com o menor número de palavras o leitor vê a mesma imagem? Sim? Óptimo, então corta-se.
Mas isso ainda não é reescrita.
Isto sou eu a evitar fazer a verdadeira revisão que consiste em cortar grandes partes do texto quando não estão ali a fazer nada; a escrever novos capítulos para tornar mais explícito o carácter das personagens (através das suas acções denunciadoras do verdadeiro feitio, ao contrário das palavras que não passam de sacos de vento que ruem em segundos. Querem conhecer um homem? Julguem-no, conheçam-no pelo que faz, como actua); a desenvolver capítulos curtos em cenas (de modo as mostrar as pessoas a agir, pondo as imagens, as acções na cabeça dos leitores).
Exemplo: em vez de afirmar “era um menino de borgas pouco dado ao estudo” posso antes mostrar Fulano a levantar-se tarde depois de uma noitada, a atender o telefonema de uma amiga, a dizer aos pais que vai “à escola”, a ir ter com a amiga, a drogar-se com ela, a dirigir-se ao fim da tarde a um bar e a repetir a cena do dia anterior.
É o célebre “show don’t tell” dos escritores de língua inglesa. É uma boa regra, mas para mim difícil de aplicar porque sempre fui do género tell, tell, tell, show little. Pode mostrar-se muito do carácter das personagens com cenas não muito extensas. Posso dizer que a Sicrana é uma mentirosa compulsiva, mas esse traço peculiar é melhor demonstrado se a puser a mentir a quatro pessoas, umas a seguir às outras, em dois minutos. Também se chama a isto dramatizar ou encenar. Tenho pouca prática e portanto em vez de me dedicar ao trabalho a sério, fazer a real rewriting, concentro-me em pequenas emendas de ortografia e gramática. Preguiça e medo.
Os escritores portugueses, ou pelo menos aqueles que leio (e de quem oiço falar, mesmo que não tenha lido nada deles), praticam o tell, tell, tell. Posso estar enganada, mas penso que a maioria não mostra a acção. Estou? Por favor, se estiver, corrijam-me e dêem exemplos.
Esta é a minha primeira reescrita. Supostamente devia concluí-la em dois meses. ‘Tá bem abelha. Veremos. Leio autores estrangeiros que fazem sete, treze reescritas e pergunto-me se alguma vez atingirei esse nível de pachorra. Gostar das personagens que se criou é essencial, porque se não gostarmos não vamos querer passar muito tempo na sua companhia. Há uma data de coisas que sei sobre as minhas, mas não tornei claro na primeira versão.
Bem... back to... rewriting.
21 de Abril
Também não consegui encontrar nada em sites brasileiros sobre reescrita. Pensava eu que estavam mais próximos do processo americano do que do nosso, mas ao que parece enganei-me.
Os americanos explicam a mecânica das coisas, como se vai do ponto A para o ponto B. Nós escondemos os factos, a mecânica da vida, os processos. Não mostramos nada. Não revelamos nada. Não partilhamos nada. Daí se explica a profusão de poetas neste país porque a poesia não se explica. É legítimo esconder no poema. O poema é um véu coberto por outros véus e qualquer pessoa que o leia pode atribuir-lhe significados diferentes dos de outro indivíduo, cobrir esse poema com o seu véu. Alguém me explica como se faz um poema? A mecânica da coisa? E uma ponte?
A poesia pode ter imensos significados e não tem de se explicar porque é etérea, porque é “poesia” (ao contrário de uma ponte. Para ser desenhada e construída tem de aprender-se a fazê-lo primeiro, requer anos de estudo trabalho árduo).
Quem é que faz poemas? Quando é que são feitos?
Os jovens.
Na adolescência.
Sabendo que Portugal é um país de Poetas, chego à seguinte conclusão - Portugal é um país adolescente. Ainda não amadureceu. Talvez date de quinhentos anos a sua adolescência (ou recusa terminante em crescer, evoluir - facing adulthood). Mas nós, enquanto nação, enquanto pátria, vamos ser obrigados a crescer um dia. E aí a quantidade de poetas diminuirá abruptamente. Talvez a quantidade de romancistas cresça.
Um poema é fácil de fazer. Quantos poemas ocupam quatrocentas páginas? Quantos poemas há em cem mil palavras? Cem mil palavras podem ser a inteira obra de um único poeta consagrado. Daqueles traduzidos lá fora. A sua inteira produção. As primeiras cem mil palavras de um novelista, há quem diga um milhão, são sempre porcaria. Sempre. Nem me atrevo a contabilizar as palavras que já escrevi até hoje, desde que comecei a escrever a sério aos vinte e um anos. Tenho medo de ainda não ter atingido o milhão de palavras - o que significa que o que fiz até agora não tem nenhum valor. O bom nisto é que se evolui sempre.
Um poema não exige o trabalho de um romance (ou novela) de cinquenta mil palavras. Ou oitenta. Ou cem. Um romance é um projecto a longo prazo. Por mais que uma série de poemas (que podem compor um todo conexo) seja reescrito, isso não implica nem de longe o mesmo trabalho que dá reescrever um romance inteiro. Várias vezes.
Por isso é que eu não encontro informação em português sobre a reescrita. E pouquíssima ou nenhuma sobre escrita. Sobre “como escrever”, o processo. A mecânica. Porque dá trabalho, implica o dispêndio de muito tempo. É tarefa de fôlego.
Permanecemos na adolescência, enquanto nação, não partilhamos o pouco que sabemos com os outros.
Vemos essa adolescência flagrante no comportamento dos nossos governantes. Deputados que, apanhados em falta, rejeitam as suas responsabilidades em vez de, honradamente, reconhecerem que se comportaram mal e devem ser punidos.
Quem é que faz isto? Os putos.
- Foi sem querer!
- O cão comeu o meu tpc!
- Doía-me a barriga!
Um verdadeiro adulto aceita as suas responsabilidades. Não dá desculpas.
E nós somos os mestres das desculpas, não é? O célebre “não há condições”.
Fraquíssimos níveis de auto-estima também têm o seu papel. O medo do falhanço. Público. Mas escrever um romance é falhar infinitamente aos olhos de toda a gente. Todos os romances são falhanços (li algures). O próximo vai melhor, we tell ourselves. Fail a little better li algures num site dedicado à escrita. Falhar um pouco melhor da próxima vez. Publicamente, porque não há outra maneira.
Os americanos são um imenso oceano, de correntes e contracorrentes, sempre vivo, a mexer-se, a renovar-se; os portugueses são como um lago estagnado.
[Hoje não revi nada.]
23 Abril
Estive a ler mais sobre escrita. Em blogs de escritores americanos, pois claro. Eles são muito lúcidos e extensivos nos seus pensamentos.
Li uma autora que me deu uma nova visão sobre o tema da encenação, sobre o “show, don’t tell”. Diz ela que tem de haver um equilíbrio. Que não é preciso mostrar tudo, que às vezes é melhor contar, para bem da narrativa.
Ah, isto faz sentido, pensei. Já não me sinto tão culpada por abusar no tell. É bom saber que não tenho de o eliminar.
Bom, vou ver um filme
[Escrever um romance é como participar numa maratona. Várias maratonas.]
[Escrever um poema é como participar numa corrida de cem metros.]
Prefiro as maratonas.
24 de Abril
Ontem não revi nada.
[BACK TO HIATUS]
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