terça-feira, outubro 10, 2006

Quota

10 de Outubro’06 (terça-feira)

 

 

Hoje começo o estúpido do emprego. Frases pequenas, prendem a atenção, os olhos colados às páginas. Philip Roth é muito bom, ontem comprei o livro e vou a metade. Talvez efeito dos diálogos. Não há descrição. Não há indicação de quem fala. Há demasiado tempo não leio. E o bizarro é não ter fome das palavras dos outros. Não me apetece ler, mas devo; tenho fome das minhas mal alinhavadas palavras, insuficientes para descrever as emoções que sinto e vejo nas histórias que imagino. [Estou a beber chá de camomila. Esta foi uma pausa para fornecer informação inútil.] Li algures que Virgílio Ferreira escrevia mais do que lia [oh, meu Deus, estou com soluços], mas ele podia dar-se a esse luxo por ter aprendido latim. Teve as ferramentas certas da língua, a estrutura, a argamassa. Como se fosse uma casa construída à moda antiga para durar. E sabem como são os apartamentozinhos merdosos dos nossos dias, novos, a custar 30 mil contos e que racham ao fim de poucos anos, nos quais se ouve o vizinho do lado, frente e de cima, de modo que gritos à Tarzan ou Jane (quando apropriados) estão excluídos. E não esquecer, evidente, os miúdos a dormir no quarto ao lado. E para mais, para piorar – há que existir (não digo viver) nos apartamentos merdosos 30, 40 ou mais anos. É bonito [sarcasmo], é a vida que temos. Mas voltando à metáfora. Foi esta a estrutura linguística que me deram. Não me deram o latim. Penso que deviam tê-lo feito. Quero processar a Manada de Ministros e Sub-Ministros e Quase-Ministros e Sub-empreiteiros da Língua Portuguesa, que sonegaram o latim da minha vida. A Educação (a Exterior) devia ter a função primária de ofertar todos os instrumentos aos miúdos necessários no futuro à construção da sua vida. Devia fornecer os materiais Todos – mais tarde a malta escolhia. E agradecia pelos que lhe eram, agora, essenciais. Eu, por exemplo, só descobri que desejava ser escritora (oh, esta palavra que me mete medo, a designação, os juízos que encerra) já bem depois dos 20 anos. E lá fui ao interior da minha Casa, à procura do latim. Claro que não o encontrei. Agora imaginem os miúdos que querem ser Músicos. Na infância não aprenderam a tocar piano, não sabem soletrar o dó-ré-mi básico, são analfabetos musicais. Vão lá dentro, à sua Casa, entusiasmados, talvez na infância ou como eu após os 20 anos – e o sítio onde devia estar o piano está vazio. Sentem uma terrível ausência na vida. Podem aprender em adultos, concedo, mas não é a mesma coisa, não é verdade?

 

Dêem-nos os utensílios, todos os materiais, a matéria-prima, dêem-nos tudo. Nós depois descobrimos os que foram de facto importantes.

Por isso (concluo) que Virgílio Ferreira podia dar-se ao luxo de ler menos do que escrevia. A Casa sólida não ia abaixo, não tinha infiltrações. Invejo o sacana. Teve o que eu não tive. Foste um privilegiado. Tentei remediar a situação. Frequentei a cadeira de Latim 3 meses durante a faculdade. Desisti. Mas aí reconheço a culpa. É difícil criar hábitos inconscientes na vida adulta. Ou é mais difícil para os preguiçosos. Agora sei que devo combater a indolência e ler muito mais do que escrevo. E os Bons. Os Grandes. Epá, os Russos. Li o conselho no blog de um escritor americano e por instinto percebi que ele estava correcto. Felizmente posso ir à biblioteca. Esta semana não. Na próxima? Logo se vê. Sim, os Russos. Os Grandes. Os Bons. Os Excelentíssimos. Para suprir com material alheio a falta de vigas na minha Casa. No geral é um Roubo. Linguístico. Estilístico. De Forma, Estrutura e Essência. Talvez de Função. Vêem, Sub-Empreiteiros da treta que ditaram a minha educação longínqua – condenaram-me ao Roubo. Felizmente apenas roubo moral ou eticamente condenável – se condenássemos este género de patifarias. Mas ao invés saudamo-las. Por vezes tenho pensamentos não digo idiotas, mas estranhos. Imagino que antes de cair neste corpo humano fiz alguns acordos com Deus ou o Conselho de Anjos ou o Conselho de Administração lá de Cima [não admito sequer a possibilidade, oh, nem quero pensar nela, de ter sido com os gajos de Baixo]. “Tem de resolver o seu problema de falta de disciplina. Vamos dar-lhe o nódulo norte em Capricórnio. E instilar um desejo enorme em si que só pode ser obtido se ultrapassar certos obstáculos.” “Tais como?” “Bem, o latim está fora.” “Mas...” “Tenho pena. Fora. Terá de activamente buscar o que lhe foi omitido na infância.” “Não considera, senhor Presidente, que isso é drástico demais?” “Não. Discutimos o assunto e achámos que seria a melhor solução. A não ser que não queira voltar à Terra.” “Não tenho escolha.” “Pois, não tem.”

 

Eu devo, ao menos timidamente, ter pedido um nódulo norte em Sagitário, mas desconfio que houve uma recusa imediata e simpática, embora firme. Isto pode não fazer sentido para larga maioria dos que me lêem. Googlem “capricorn north node” e o resto. Em inglês. Obterão toneladas de resultados. Sempre em inglês. Sim, cada vez mais aprecio a astrologia. Se fosse menos preguiçosa estudá-la-ia a fundo, com empenho. Só que não existem livros de astrologia (ao que saiba da última vez que procurei não os haviam) na Biblioteca José Saramago, em Loures. Logo este outro obstáculo à progressão na aprendizagem de algo que me interessa em adulta também deve ter sido negociado lá em Cima entre eu, alma sem corpo, e os Gajos do Conselho de Administração. Alguma função deve servir. Não tenho livros, não posso aprender em condições, aprendo mal e através da internet. Mas livros a sério seriam melhores.

Que bom, vou para o emprego à tarde [sarcasmo]. Levantei-me às 7h. Li e escrevi até às 11h. Ainda não são 11h, na verdade, e tenho um género de “quota” a preencher antes de ir para a bicicleta elíptica. É uma quota informal. Se me ponho a fazer planos e determinações – falho na sua execução. Portanto esta é uma quota informal (ainda não atingida, a propósito). Contudo o que devia estar a fazer – era passar o raio do livro para o Alphasmart. Quando há vários deveres fujo de um para o outro ou invento um para onde fugir. Ah: informo que não respondo a comentários relativos a este texto. Não quero ser mal-educada, simplesmente não me apetece.

Agora fiquei sem assunto, mas falta preencher o resto da página quadricular A4. E eu que odiava matemática em pequena (abençoadamente não é material de que necessite hoje. Um ódio de estimação, deixem-mo tê-lo).

 

Mudando de tema. Quando à pontaria fabulosa dos Senhores da GNR, o meu comentário: Estado Policial, vivemos num e já se pode abertamente anunciá-lo? Oh, sim, suponho ser isso. Agora qualquer ladrão – ou simples cidadão que nada fez de errado – pode ser morto ou baleado pelos Senhores da Polícia (neste caso, da GNR). Pensava que, segundo a Constituição cá do Burgo, o direito à Vida é superior ao direito à Propriedade. Ou os Gajos do Governo decidiram alterar isso e informaram primeiro as Excelências da Autoridade? É que se de repente vivemos em Cuba ou Arábia Saudita ou mesmo na China, fazem a caridade de informar antes de mais os cidadãos. Suponho (desconfio) que não querem assustar os carneirinhos e interromper-lhes o pasto pacífico. Sou tão má. Sabem o que penso, confesso, desejo ardentemente que aconteça no próximo incidente desta natureza?

Que o Senhor da GNR, epá, assim por azar, pois decerto não apontará para matar, tivesse uma bala extraviada (extraviada, decerto! Concedo: perdida, ‘tadinha da bala, ali sem mapa) que se fosse alojar, fazer o ninho, no crânio de um dos ocupantes desse futuro carro perseguido – e que esse ocupante fosse.

A santa da puta da mãezinha dele. A mulher que ama. A filha adolescente a quem nega saídas à noite com Aquele Rapaz porque lhe desagrada a pinta. E visse, a cores e a 3D, o cérebro escorrer-lhe lentamente do crânio como manteiga derretida. Era bonito. É esse o meu intenso desejo. Oh Lord, let it be so. E com esta reconfortante nota alcancei a minha quota. Joquitas, meus amores.

Joquitas.

 

[Cerca de 1350 palavras.]

 
Powered By Qumana

Sem comentários: