terça-feira, março 01, 2005

Modalidade:livre (prosa ou verso) - inspirada numa ilustração.

A Lua e a Menina

Eu não sou como as outras pessoas, consigo ver coisas que mais ninguém vê. “São sombras, a tua imaginação, imaginas as coisas. É sempre assim nessas idades” – é o que me dizem. Mas não é verdade. As sombras são monstros comandados pela bruxa da floresta. São monstros que se escondem na noite e morrem quando a luz bate neles.
A minha única aliada é a lua, lá em cima.
Não gosto de dormir sem luz. Quando a lua não brilha e eu não posso abrir as cortinas para que a luz inunde o meu quarto (porque ela também tem o direito de dormir, coitada, não pode estar sempre a tomar conta de mim, não é?) - eu acendo o candeeiro da mesa.
Mas quando adormeço coisas estranhas acontecem: o candeeiro apaga-se sem que ninguém toque nele e de repente o meu quarto transforma-se numa floresta. Com árvores enormes e cheias de galhos e ramos que se movem como se as árvores pudessem andar. Não podem, mas atrapalham-me. Baixam-se, põem os ramos à minha frente, assustam-me com as folhas. Prendem-me a roupa e os pés. Eu corro, corro, corro de volta à vila. Corro para longe da floresta. Às vezes por causa do medo e por ter acabado de acordar – as árvores apanham-me. E vão-me passando de ramo em ramo, umas para as outras. Querem ver se conseguem levar-me até à bruxa, mas nunca conseguiram até agora. Eu salto ou parto os galhos e bato nas árvores. Depois corro na outra direcção.
Chego à vila e quando vejo a luz sei que estou em segurança.
Ando devagar pela rua que não tem ninguém, nem vizinhas à janela para me perguntar onde eu estive, onde fui, de onde venho. Quando eu respondo nunca me ouvem, então para que serve responder? Vejo os gatos a dormirem em sítios altos e os cães a dormirem no chão. Caminho devagarinho porque já sei o que me espera.
Quando bato à porta da minha casa a minha mãe abre a porta de rompante e começa logo a ralhar. “E onde é que estiveste, e é sempre a mesma coisa, sai a meio da noite, não diz nada a ninguém, e se te acontece alguma coisa, e depois como é?!, e não me venhas cá com histórias de mais bruxa e nem meio bruxa, se queres brincar no monte brincas de dia!, de dia, ouves!, e vai já direitinha para a banheira limpares-te, toda suja, meu Deus. Toda encardida. Nem fechar as portas todas à chave resulta! Mas como é que tu abres as portas?! Um dia vais ter de me dizer! Abre as portas todas, a rapariga!”
E se eu esta noite ficasse cá fora? Com a minha amiga lua. Com ela. Durmo com ela esta noite. Não quero que me ralhem. Quero que acreditem em mim. A lua acredita. Esta noite durmo contigo, lua. A bruxa nunca me vai apanhar, nunca, nunca. Tu não deixas, não é? Contigo estou em segurança.
Durmo contigo esta noite, lua.