terça-feira, janeiro 03, 2006

Coisas que Seguramente Acontecerão no Ano de 2006

Publico um livro. É um sucesso nacional e estrangeiro, best-seller mundial! Os direitos vão custar uma fortuna! Fico podre de rica. Vejo Deus (parece que sim, de acordo com o meu horóscopo), tenho iluminações espirituais; aprendo astrologia e tarot. Escrevo dez livros e o sucessaço repete-se. Contrato guarda-costas para manter os fãs ao longe (é que são muitos, demasiados).
No ano de 2006 serei loira porque me parece que o ruivo é capaz de me ficar mal.
Largo o emprego e continuo, todavia, a levantar-me às sete da manhã só para escrever. Ou ler. Compro um computador novo. Mudo-me para Barcelona e aprendo castelhano. Faço levantamento de pesos para definir os (escassos) músculos. O Iraque fica pior. O Bush vai para o chilindró e é obrigado a trocar favores sexuais com os outros prisioneiros de modo a garantir a segurança pessoal. Compro uma casa à beira-mar, artilho-a com painéis solares de cima a baixo. Compro um carro com motor a ar comprimido. Divido com os meus pais a minha (futura e fabulosa) riqueza. Mando-os numa viagem à volta do mundo em cruzeiro. Primeira classe. Adquiro montanhas de roupa. E talvez um cão: um cão-de-água português, sempre quis um. É melhor pôr um quintal grande nessa futura e por enquanto imaginada casa. Casa, tem de ser casa.

Aprendo a tocar piano. Tenho três vezes lições por semana. Leio a obra toda do Camilo Castelo Branco. E do Lobo Antunes (não é mau, o gajo!). Leio a Agustina. Leio, leio, leio. Assisto pelo televisor, abismada, ao descalabro irreversível de Portugal. Ainda bem que o abandonei a tempo, penso, a partir de agora é de Venezuela para baixo.
Aprenderei a cultivar. Sim, seguramente aprenderei a cultivar, terei uma horta com alface, feijão verde, courgettes, tomate, couves, beringelas. Com uma vedação à volta para o cão não ir lá. Irei com o cão a lagos e rios e ele apanhará peixes que farei grelhados numa fogueira improvisada. Um é para ele, outro para mim.
Deixarei de respeitar as canetas.
É imperativo que deixe de respeitar as canetas. É essencial que eu tenha uma horta. Desconfio que no futuro saber cultivar me ajudará.

Não sei se levo o gato comigo para Barcelona. Tenho medo que não se dê bem com o cão, tenha ciúmes e as garras do sacana são afiadas. De manhã o gato, esperto que nem um alho, dirige-se aos pescadores e pede peixe com os seus meneios sedutores de felino. Talvez compreenda que o cão também sabe pescar e por aí nasça a amizade (interesseira, absolutamente interesseira, mas o canídeo é um paz de alma e possui um espírito nobre).
Assisto, contente, no televisor (do qual não me consigo livrar) ao lento virar de página do mundo: de súbito as energias alternativas começam a ser quotidianas, rotineiras, e o petróleo perde terreno. Em todo o lado - menos em Portugal. Sim, definitivamente de Venezuela para baixo a minha pátria longínqua caminha. Longínqua como o reino impossível dos contos de fada.
Apaixono-me, engravido, tenho um bebé (não por esta ordem).
Ah, ah, ah! Esta parte era a brincar.
Passo a ter menos medo das criancinhas (“Elas não se partem? A sério? Não são como bonecas de porcelana? E se me escapam das mãos?”)

Seguramente farei o que faço sempre: não ter telemóvel ou, tendo-o, nunca o ligar.
Apresento as novas tecnologias aos meus pais. Não se entendem com aquilo. Encolho os ombros, regresso à escrita. Corto o cabelo. Deixo de usar óculos (mercê da operação a laser). Cresço vinte centímetros. Ok, dezoito. Deixo de ter sonhos pálidos em que nunca nada acontece e começo a ter pesadelos.
Vejo o primeiro marciano a tomar o pequeno-almoço no café da minha rua. Está a beneficiar do programa Erasmus. Conheço os reis de Espanha. Pedem-me o autógrafo. Assisto, pouco surpreendida, ao ressurgimento da censura em Portugal. Censura de facto, já sem medo do nome. Razões de Estado. De repente todos em Portugal esgotam as canetas de.
Tinta preta.
Escritores, artistas, pintores, cineastas abandonam o país às carradas. É muito triste, é o meu país. Penso: a vida é tão curta, porque raio haveremos de ser leais com quem nos é desleal? O patriotismo é a arma do Estado corrupto (onde é que eu li isto? Seguramente li-o algures).

Mando castrar o gato (para ver se pára de marcar os móveis, chiça. Móveis caros pois decidi ser fútil, absolutamente fútil e comprar a mobília dos ricos).
Passo-me por não haver lugares de estacionamento vagos. O raio dos discos voadores ocuparam tudo.
Beberei chá enquanto medito no sentido oculto do Universo, a verdade por detrás do véu, ora translúcido ora opaco, o significado da vida, do mundo, disto.
(A porcaria do sol na casa nove que me impede de deixar de pensar nestas coisas. Ou quiçá seja a lua em Sagitário na casa dos valores. Procura, procura, eterna procura.)
A cura para a esquizofrenia é encontrada.
A cura para o cancro é descoberta.
Os coitados dos pássaros continuam a espirrar.
Tenho pena deles. Compro cachecóis às gaivotas.

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