O Senhor Doutor Juiz Carlos Rodrigues Almeida foi, num destes dias, a Coimbra criticar “o excesso de prisão preventiva”.
Realmente, um juiz às direitas, sim senhor, ‘tou parva, ele critica o abuso de prisão preventiva! Este senhor sabe do que fala porque em onze acórdãos referentes a recursos de prisão preventiva, em nove ele fez o favor de manter os “clientes” no chilindró.
Ou seja, falou contra si próprio. Flagelou-se em público. Deve ter sido algo do estilo:
- Não obstante as minhas acções, mantenho os meus princípios!
(Ovação em pé do público delirante, tapete vermelho estendido, florzinhas. Condecorem-me este gajo Já!)
Mas é bonito, na minha opinião, ver pessoas que mantêm Princípios (apesar de não os aplicarem na realidade, quiçá por medo que os profanem com suor e sofrimento humanos, ainda se amarrotam, as contas na lavandaria andam pela hora da morte e o Omo Lava Mais Branco não dá para tudo); tal como é bonito ver que ainda existe malta que conserva a expressão Palavra de Honra no vocabulário e exime-se, quiçá por idênticos motivos, de aplicá-la no dia a dia.
Isto transporta-me a uma recordação de infância. Aos seis anos eu tinha o Vestido Mais Bonito do Mundo: cor-de-rosa (a minha cor favorita), às florzinhas. Vesti-o uma vez em casa e nunca saí com ele porque a minha mãe insistia em guardá-lo para uma qualquer (remota, hipotética) Ocasião Especial. Eu esperei. Esperei. Nunca houve festa nenhuma, visita alguma que justificasse eu usar o vestido cor-de-rosa. Cresci. Deixou de me servir. Foi um desgosto enorme.
Tal como este vestido lindo há Princípios que certas pessoas teimam em manter privados, para uso doméstico (usados de forma abstracta num diálogo pós-refeição, o cafezinho acompanhando a conversa certamente inteligentíssima); ou, pior, usarem-nos apenas em Ocasiões Especiais e em benefício de Pessoas Especiais.
Tipo o Paulo Pedroso.
Este Senhor Doutor Iluminadíssimo Juiz Desembargador, por exemplo, decidiu que os seus impolutos, elevados e nobres Princípios não poderiam ser aplicados a nove estafermos que, certamente, não eram assim tão especiais e estar agora a gastar Princípios Importantes com gentinha deste calibre não se justificava.
Paulo Pedroso, que teve a distinta pouca-vergonha de voltar a ocupar o lugar no Parlamento, estando-se a lixar para as graves acusações de que é alvo (suspeito que a Dualidade de Princípios – ou a Dualidade do seu emprego – é doença de que também padece), é na opinião do Excelentíssimo Juiz Desembargador Carlos Rodrigues Almeida uma pessoa merecedora e a quem vale a pena demonstrar a aplicabilidade no concreto dos seus níveos Princípios.
(Esta entrada ainda me vale um processo. Adiante.)
Em duas queixas graves – suspeitas de abuso sexual e (referente a outro caso) um suspeito de tentativa de homicídio, ameaças, danos e injúrias (coisa pouca) – ele decidiu pelo fim da prisão preventiva.
Em nove outros casos (atente-se na discrepância de números) decidiu manter uma medida que é contrária, nas suas palavras, “à dignidade da pessoa humana”.
Eu acrescento: depende da pessoa e depende do Omo.
Entre os nove casos há malta que continuou a ver o sol aos quadradinhos por:
- ter uma espingarda de canos serrados roubada;
- ter sido apanhada com trinta e seis doses de embalagens de heroína - uma toxicodependente Sem antecedentes criminais - (Trinta e seis? Epá, isso fornece Lisboa em peso durante um ano! Fez muito bem!);
- ter sido caçado (um tipo SEM antecedentes criminais) com duas embalagens de heroína.
Duas! DUAS.
É de meter pelos olhos adentro que este fulano pertence à Máfia italiana! Duas embalagens?! Sem Antecedentes Criminais?!? Enjaulem-me o gajo!
Não é bonito ver um Pobre Ser Humano (só por acaso juiz) ser obrigado a pesar os seus Princípios? A aplicá-los com tal lei e parcimónia salomónicas? Não é lindo? Eu acho tão bonito ver a justiça em acção. E quando estiver na prisão por ter visto, ao longe, a miragem de uma planta cannabis, vou continuar a admirar a beleza da justiça lusitana.
Pergunto-me se algum dia chegará à nossa justiça o tal do 25 de Abril... parece-me que ainda não chegou lá. Parece-me que a justiça cá do burgo persiste em funcionar nos moldes da Outra Senhora. É interessante ver que representantes da dita escolhem libertar (e duvido que este seja o caso único), entre o mal menor e o Mal Maior, o Mal Maior.
O que chateia imensa gente na actuação do juiz Rui Teixeira é aquela mania que ele tem de tratar toda a gente como IGUAL. A igualdade de tratamento aborrece os tipos do Omo Lava Mais Branco. Era giro se tal comportamento se espalhasse e infectasse todos os níveis da justiça portuguesa.
Era giro ver chegar a Democracia verdadeira (e não a abstracta, que se discute em congressos) à nossa justiça.
Sabem o que é que eu gostava também?
Gostava que três vezes por ano os juízes fossem Obrigados a visitar as prisões. Visitas pedagógicas, chamemos-lhes.
Vendo a actual situação de seres humanos (e não a abstracta, distante, evocada com ligeireza após o jantar) talvez fossem impregnados de compaixão. Sem compaixão não há justiça possível. Compaixão para os pobres e não apenas para os ricos.
Uma colega de uma amiga minha por volta dos quinze anos chagava a paciência aos pais todos os dias. Queria uma mota. Aos dezasseis anos, por lei, já a podia ter. Os pais levaram-na a um hospital onde ia parar a malta nova depois de ter acidentes de mota. Viu jovens paralisados, viu jovens em estado deplorável. Ali, ao vivo, a cores e em estéreo. Deixou de pedir a mota aos pais. Remédio santo.
Pedagógico, viram?
Não limitemos tal pedagogia aos jovens imaturos – alarguemo-la também aos nossos juízes.
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