terça-feira, outubro 07, 2003

Vejo imagens horripilantes sobre a Chechénia. O jornalista fala melhor do que qualquer personagem que eu possa inventar. Ele é um poço de personagens: relembra as pessoas que fotografou, mortas ou mutiladas.
Uma personagem, poço de personagens.
Uma pessoa, verdadeira, real, concreta.
Enquanto penso na história que escrevo (será “plot driven” ou “character driven”?) descubro, com pena, não passar de uma estória. Banal. Desprovida de violência e horror, sem inimigos como os russos e os tchetchenos. Não tem aldeias arrasadas com seiscentos cadáveres.
Seiscentos.
Não sabia que as coisas estavam tão más. Os jornais poluem o tempo televisivo com as mesmas notícias de sempre e a merdinha da bola.
Fala-se no documentário na People and Arts de genocídio. De manipulação e desinformação, comuns na Rússia desde à décadas, agindo em conjunto com a guerra.
Sem imagens há notícias?
Há, mas nós não as vemos. O invisível, porque não visto, existe de facto?
Sim, mas nós não sabemos que existe.
A realidade precisa ser conhecida para existir totalmente (aos olhos humanos). É a velha história da árvore a cair na floresta. Se não estiver lá ninguém para ver será que caiu de facto?
De que maneira podem os jornalistas não se envolverem nas guerras, emocional e eticamente? A imparcialidade parece-me quase impossível ou até impraticável. Suponho que o seu aprendizado dura a vida inteira.
Os jornalistas, vejo, têm de entrar “ilegalmente” na Chechénia para poderem informar sem passar pelo crivo russo. Mas que merda de mundo é este? E a Convenção de Genebra, pá? Mil convenções não alteram a natureza humana, talvez só a desviem um bocadinho e por um período passageiro.
Assisto ao documentário e tento tirar dali algo que possa usar na escrita. A única coisa que posso tirar é o facto de que o sofrimento humano é omnipresente e inevitável. Qualquer livro, para ser credível, tem de o mostrar. Porém, eu fujo. Do sofrimento. Do mal. Da dor. Não gosto das coisas que doem. Todavia um livro tem de ser verdadeiro e conter dor. Dor humana.
E prazer. Como o pequeno prazer de beber água quando se tem sede ou dar um passeio no jardim quando o sol espreita entre as nuvens.
Desde que eu nasci quantas guerras houve na Europa?
Na Europa, meus lindos. No nosso continente. Quantas?
E eu aqui, absolutamente incólume. Nós aqui, incólumes. Níveos. Limpos. Puros. Cegos, cegos.
Uma jornalista afirma não acreditar mais que a informação possa mudar o mundo. Se os jornalistas perdem a (escassa) inocência e os ideais que ainda possuem quem nos vai abrir os olhos? Continuaremos cegos.
Outra jornalista revela que a maioria dos colegas querem primeiro a notícia e não se envolvem ou envolvem-se em último lugar. Primeiro está o trabalho, ser-se profissional.
“Todas as noites oiço os obuses a cair e isso vai durar”, diz a jornalista (Petra?), que não acredita que a imagem possa mudar o mundo. Sabe que era uma mentira que pregava a si própria quando andava de câmara na mão a filmar. A guerra.
Então o que pode ser feito se em última análise nem a imagem, nem o revelar das brutalidades nos comove mais?

Não sei.

[Vou pensar no meu personagem. Vou pensar neles. Descobrir quem é. Tentar conversar com ele, se me deixar. Não quero enrugar a alma e estilhaçar o coração. Vou falar com ele.]


Adenda: Candidato pró-Rússia 'vence na Chechênia' Uma farsa, parece-me.

Não percebi se a 2ª guerra chechena acabou ou não (acho que não). E não sei ainda se os jornalistas já podem ou não circular livremente dentro da Chechénia.



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