Quatro meses para escrever quinze mil palavras. Demorei. Agora tenho de fazer uma última revisão à A Imortalidade.
Depois coloco aqui o texto completo.
quinta-feira, julho 28, 2005
13º e último capítulo d'A Imortalidade
Observo a mudança do dia para a noite através da alteração da luz que ilumina a sala. Pouco a pouco os meus sentidos vão despertando, saindo do embrulho de gaze que os envolve. No segundo dia após Evangeline ter partido há uma explosão súbita dos meus sentidos, que se intensifica ao raiar do terceiro dia.
A plenitude aromática assalta-me as narinas como um exército combatente. Sinto a pele formigar no embater das moléculas. Todo o meu ser arde absurdamente, por dentro e por fora, num género de fogo místico e real, um fogo que me consome se não o apagar, um lume que devo suprimir cumprindo qualquer coisa, mas o quê não me é claro. Aspiro o cheiro da última página do quinto livro a contar da esquerda, na segunda fila de cima, sito na sétima estante – sei o lugar exacto de onde emana cada imperceptível odor. Conheço a localização dos insectos pelo seu cheiro e também pelo som que as patinhas produzem percorrendo os minúsculos e obscuros buracos abaixo do solo. Eu até oiço o mastigar desdentado das minhocas, lesmas e caracóis. Ao princípio abateram-se sobre mim numa homogénea multiplicidade, indiscernível, mas em breve fui capaz de os distinguir, incluindo o de Evangeline, ainda presente no sofá. Tinha a forma que o seu corpo ocupara. Depois, olhando para trás, aspirei o percurso que ela fizera desde a cela. Eu consigo cheirar os seus passos, o ondular do cabelo e vestido, o movimento pendular dos braços.
Os sons derramam-se sobre os meus ouvidos num conjunto escaldante, enlouquecedor. O som da erva oscilante, lá fora, o das moscas, mosquitos e cigarras, o som do suave crepitar dos livros e da madeira, o som da casa a envelhecer lentamente, o som do ar que me circunda.
A visão magoa-se com a luz solar. Não a suporto. Choro se mantenho os olhos fixos para a janela clara por mais de dois segundos. Recuo para as trevas e sinto-me subitamente bem, como se no ventre materno, no ninho. Do escuro vejo os móveis, as paredes, a divisão claramente na sua crueza, percebo maiores detalhes e com melhor percepção do que se estivesse lá fora, sujeita ao sol do meio-dia, e ainda mortal.
Mortal. Já não o sou.
Apreendo-o, de improviso, e não apenas por causa da brusca explosão dos sentidos (o simples roçar arrepia-me as estranhas como se eu fosse um violino com as cordas no interior, o toque intensifica o fogo inicial, para o qual não achava explicação e não sabia como extinguir), mas devido também à aterradora resposta para a solução final do lume a consumir-me de dentro para fora com crescente intensidade.
O lume é o apetite. E só o apagarei ao saciar-me, cedendo ao trovão ribombando nos ouvidos. Bebendo sangue.
Nunca tive tanta fome na minha vida. Comeria qualquer maltrapilho leproso e pestilento que me apresentassem. Comeria um cadáver se a carne ainda permanecesse morna ao tacto. Sorveria os fluidos putrefactos de um defunto posto na terra há anos. Qualquer coisa. Eu tenho de comer. É demasiado forte. Um imperativo físico igual ao acto de respirar para os humanos.
Os ouvidos detectam movimento abaixo dos pés. Com uma força que nem sonhava possuir esmago o chão com os punhos, esgaravato entre o cimento e a terra, que pus à vista fazendo uso das unhas a caminho de se tornarem garras, mas ainda sensíveis. Arranco algumas. E, com cuidado, pego na centopeia e amasso o seu corpo, deixando as pequenas gotas escorrerem na língua. Não chega. Açula-me o fogo.
E, num flash, vejo quem me poderá matar a fome.
O meu marido.
O horror daquilo que pensei abalroa-me. Mas a fome é tamanha. Recuo para o nicho mais escuro, debaixo da biblioteca. E choro. Grito, berro. Não reconheço os urros. São sub-humanos. Tenho as pernas dobradas, encostadas à barriga, seguras nos meus braços. Olho o tempo todo para a porta. A porta tentadora. Eu consigo, eu sou capaz. De resistir a isto. Sou capaz. Vou ser capaz. Sou. Sim, que me queime o lume por dentro. Não vou abandonar a pouca humanidade que me sobra. Não cederei à terrível tentação. Ela sabia. Cabra. Sabia que eu pensaria nele. Calculou que fosse a correr para casa e o matasse como um animal. Cabra, cabra!
Não. A culpa é minha. Não imaginei que o génio mau da lâmpada se libertasse sozinho.
Tento adormecer, contudo os sentidos em alerta impedem-me. Banho. Água. Preciso de um banho quente. Preciso de investigar o resto da casa, encontrar o quarto-de-banho, mas receio passar perto da saída e ceder à fome. Fico quieta, os olhos arregalados para a saída, as unhas a rasgarem as calças e a enfiarem-se na carne.
Resisto. Consigo resistir.
Consigo resistir.
A luz já não me magoa a vista. É uma fonte de prazer que me aquece o sangue e desperta o apetite. Mantenho-me o mais longe dela. E recolho-me à praia, ao anterior caos apaziguador. Já não resulta. Eu hoje sou aquela paisagem destruída. Tento fazer sentido disso tudo, do porquê.
Chego à conclusão que Evangeline era a minha sombra, o meu negativo, e que fui ao seu encontro com o fim inconsciente de me tornar um ser completo. Era o destino. Foi ele que me colocou no seu caminho, me indicou a direcção. Tem de haver uma razão para isto. Tem. Um propósito final, transcendente. Passei a existência a evitar o lado sombrio, a recusar o abismo. Agora não tenho escolha. Tenho-o em mim. Eu sou o abismo. Pondero se devo abraçá-lo ou não, se o devo manifestar. Estou viva, mas será necessário que mate para permanecer viva? Evangeline não comeu durante seis anos e meio e reteve ainda muita força. Não acho que seja necessário beber dos outros. Rejeito a tentação, mas não o abismo pois ele já me preenche. Eu caí e não há volta. E, pela primeira vez, sinto-me, por entre a dor física e psicológica, completa. Inteira. Eu própria. Sem máscaras. Sem cedências nem submissões. Vivo a minha verdade. Que é uma verdade terrível, o que não me consola em nada. Esta verdade íntima aterroriza-me, mas é quem eu sou. Já não posso fugir da sombra. Ela apanhou-me.
Leio livros. À noite. Evito o dia. A fome não amainou, mas descobri que, juntamente com a extraordinária força física, possuo grandes reservas de força mental e sou capaz de exercer autocontrolo.
Comecei numa ponta. Acabei de ler os livros situados na primeira metade da formação em U da biblioteca. Demoro tempo a saborear as palavras, os cheiros dos tomos, a imaginar a acção. Desconheço há quanto tempo aqui estou. Não conto o tempo. Durante o dia interno-me no nicho mais obscuro que encontro, dentro da casa cujas restantes divisões investiguei, e leio o Tao Te King de Lao Tse cem vezes. Mil vezes. Até a luz solar partir. Então retorno à biblioteca. E prossigo. Sem nunca deixar de sentir as picadas depauperantes da fome. Por vezes vou ter com Aníbal e leio algumas passagens das obras. Não devia, mas tenho pena dele. Não tem sequer o escape da morte. Para mim a morte é possível ainda. Pesquiso sobre o assunto, na ciência, na ficção. Como poderá um vampiro morrer de facto? Não confio nos mitos. Um dia quando for assolapada pelo desejo da morte, desconfio que rapidamente descobrirei um método, ou melhor, que outros o descobrirão por mim, basta dar-lhes a oportunidade.
O espelho reflecte a imagem de um corpo anoréctico. Evangeline não estava assim. Pondero que em trezentos anos acumulou força e poder. Era preciso muito para a quebrar. Eu nunca bebi sangue, nunca me alimentei. Talvez esta seja a via para a morte inevitável. As picadas da fome por vezes desvanecem e a cabeça fica-me leve. Retornam menos fortes. Mas a presença da fome é suprema. Diminui de força em apenas um a dois por cento. Quantos anos levarei até que desapareça? Até me tornar um esqueleto vivo?
Escuto passos e a seguir o abrir da porta da entrada. Assusto-me como um animal acossado, um coelho perseguido por cães de caça. Escondo-me atrás da estante. Domino-me e avanço para ver dois miúdos com cerca de dezasseis anos.
- Vamos embora – diz o rapaz, alarmado.
- Não, vamos ver o resto – contrapõe a rapariga, imprudente e vítima da mesma curiosidade que eu.
Mas ele não a ouve. Agarra-a pelo pulso e leva-a daqui para fora. Nunca mais voltaram. Não consigo reprimir o pensamento de que tinham os dois um ar apetitoso. E as roupas. Eram... diferentes. Há quantos anos estou cá?
Nessa noite arrisco ir à rua. Avanço cinco tímidos passos após transpor a porta. Rapidamente volto atrás, com o terror do que poderia encontrar lá fora. Que horrores me esperam ali? Prefiro ficar. Aqui estou segura. É ainda cedo para morrer. Não acabei de ler os livros.
Li a biblioteca inteira mais do que uma vez. Há várias semanas que não consigo ignorar a fome, como dantes conseguia. Mergulho a atenção no Livro da Via e da Virtude de Lao Tse.
Lê-lo é como fazer auto-hipnose. Este livro é a minha salvação.
Então, de repente, a meio da leitura, sinto uma presença atrás de mim.
Volto-me e vejo Evangeline. Ela regressou.
Quer levar-me com ela.
Quer que eu seja a sua companheira, a sua irmã. De infortúnio. Os vampiros, na terra, duram muito pouco e ela está sozinha. Só, como eu.
Traz-me sangue dentro de uma geladeira de aspecto futurista. Não reconheço o design demasiado avançado. Está repleta. Não esperava encontrar-me viva. Veio, mesmo assim.
E eu... bebo. Esgoto o sangue em minutos. Bebo cada gota. Como se bebesse, sedenta, de uma nascente de pura água fresca. E de súbito sinto brotar em mim uma misteriosa força anteriormente adormecida.
Escrevo no presente porque é nele que vivo há décadas – um presente infernal.
Aceito a fome. Aceito que a devo saciar. Aceito-me.
Vou com Evangeline. A porta da casa cerra-se, por fim.
A quem ler isto: fecha tu também a porta pelo lado de fora. Eu posso voltar. Eu posso já estar aí no interior. A observar-te. Das trevas.
E com fome.
Muita fome.
FIM
27 de Julho de 2005
(Restantes capítulos aqui.)
Observo a mudança do dia para a noite através da alteração da luz que ilumina a sala. Pouco a pouco os meus sentidos vão despertando, saindo do embrulho de gaze que os envolve. No segundo dia após Evangeline ter partido há uma explosão súbita dos meus sentidos, que se intensifica ao raiar do terceiro dia.
A plenitude aromática assalta-me as narinas como um exército combatente. Sinto a pele formigar no embater das moléculas. Todo o meu ser arde absurdamente, por dentro e por fora, num género de fogo místico e real, um fogo que me consome se não o apagar, um lume que devo suprimir cumprindo qualquer coisa, mas o quê não me é claro. Aspiro o cheiro da última página do quinto livro a contar da esquerda, na segunda fila de cima, sito na sétima estante – sei o lugar exacto de onde emana cada imperceptível odor. Conheço a localização dos insectos pelo seu cheiro e também pelo som que as patinhas produzem percorrendo os minúsculos e obscuros buracos abaixo do solo. Eu até oiço o mastigar desdentado das minhocas, lesmas e caracóis. Ao princípio abateram-se sobre mim numa homogénea multiplicidade, indiscernível, mas em breve fui capaz de os distinguir, incluindo o de Evangeline, ainda presente no sofá. Tinha a forma que o seu corpo ocupara. Depois, olhando para trás, aspirei o percurso que ela fizera desde a cela. Eu consigo cheirar os seus passos, o ondular do cabelo e vestido, o movimento pendular dos braços.
Os sons derramam-se sobre os meus ouvidos num conjunto escaldante, enlouquecedor. O som da erva oscilante, lá fora, o das moscas, mosquitos e cigarras, o som do suave crepitar dos livros e da madeira, o som da casa a envelhecer lentamente, o som do ar que me circunda.
A visão magoa-se com a luz solar. Não a suporto. Choro se mantenho os olhos fixos para a janela clara por mais de dois segundos. Recuo para as trevas e sinto-me subitamente bem, como se no ventre materno, no ninho. Do escuro vejo os móveis, as paredes, a divisão claramente na sua crueza, percebo maiores detalhes e com melhor percepção do que se estivesse lá fora, sujeita ao sol do meio-dia, e ainda mortal.
Mortal. Já não o sou.
Apreendo-o, de improviso, e não apenas por causa da brusca explosão dos sentidos (o simples roçar arrepia-me as estranhas como se eu fosse um violino com as cordas no interior, o toque intensifica o fogo inicial, para o qual não achava explicação e não sabia como extinguir), mas devido também à aterradora resposta para a solução final do lume a consumir-me de dentro para fora com crescente intensidade.
O lume é o apetite. E só o apagarei ao saciar-me, cedendo ao trovão ribombando nos ouvidos. Bebendo sangue.
Nunca tive tanta fome na minha vida. Comeria qualquer maltrapilho leproso e pestilento que me apresentassem. Comeria um cadáver se a carne ainda permanecesse morna ao tacto. Sorveria os fluidos putrefactos de um defunto posto na terra há anos. Qualquer coisa. Eu tenho de comer. É demasiado forte. Um imperativo físico igual ao acto de respirar para os humanos.
Os ouvidos detectam movimento abaixo dos pés. Com uma força que nem sonhava possuir esmago o chão com os punhos, esgaravato entre o cimento e a terra, que pus à vista fazendo uso das unhas a caminho de se tornarem garras, mas ainda sensíveis. Arranco algumas. E, com cuidado, pego na centopeia e amasso o seu corpo, deixando as pequenas gotas escorrerem na língua. Não chega. Açula-me o fogo.
E, num flash, vejo quem me poderá matar a fome.
O meu marido.
O horror daquilo que pensei abalroa-me. Mas a fome é tamanha. Recuo para o nicho mais escuro, debaixo da biblioteca. E choro. Grito, berro. Não reconheço os urros. São sub-humanos. Tenho as pernas dobradas, encostadas à barriga, seguras nos meus braços. Olho o tempo todo para a porta. A porta tentadora. Eu consigo, eu sou capaz. De resistir a isto. Sou capaz. Vou ser capaz. Sou. Sim, que me queime o lume por dentro. Não vou abandonar a pouca humanidade que me sobra. Não cederei à terrível tentação. Ela sabia. Cabra. Sabia que eu pensaria nele. Calculou que fosse a correr para casa e o matasse como um animal. Cabra, cabra!
Não. A culpa é minha. Não imaginei que o génio mau da lâmpada se libertasse sozinho.
Tento adormecer, contudo os sentidos em alerta impedem-me. Banho. Água. Preciso de um banho quente. Preciso de investigar o resto da casa, encontrar o quarto-de-banho, mas receio passar perto da saída e ceder à fome. Fico quieta, os olhos arregalados para a saída, as unhas a rasgarem as calças e a enfiarem-se na carne.
Resisto. Consigo resistir.
Consigo resistir.
A luz já não me magoa a vista. É uma fonte de prazer que me aquece o sangue e desperta o apetite. Mantenho-me o mais longe dela. E recolho-me à praia, ao anterior caos apaziguador. Já não resulta. Eu hoje sou aquela paisagem destruída. Tento fazer sentido disso tudo, do porquê.
Chego à conclusão que Evangeline era a minha sombra, o meu negativo, e que fui ao seu encontro com o fim inconsciente de me tornar um ser completo. Era o destino. Foi ele que me colocou no seu caminho, me indicou a direcção. Tem de haver uma razão para isto. Tem. Um propósito final, transcendente. Passei a existência a evitar o lado sombrio, a recusar o abismo. Agora não tenho escolha. Tenho-o em mim. Eu sou o abismo. Pondero se devo abraçá-lo ou não, se o devo manifestar. Estou viva, mas será necessário que mate para permanecer viva? Evangeline não comeu durante seis anos e meio e reteve ainda muita força. Não acho que seja necessário beber dos outros. Rejeito a tentação, mas não o abismo pois ele já me preenche. Eu caí e não há volta. E, pela primeira vez, sinto-me, por entre a dor física e psicológica, completa. Inteira. Eu própria. Sem máscaras. Sem cedências nem submissões. Vivo a minha verdade. Que é uma verdade terrível, o que não me consola em nada. Esta verdade íntima aterroriza-me, mas é quem eu sou. Já não posso fugir da sombra. Ela apanhou-me.
Leio livros. À noite. Evito o dia. A fome não amainou, mas descobri que, juntamente com a extraordinária força física, possuo grandes reservas de força mental e sou capaz de exercer autocontrolo.
Comecei numa ponta. Acabei de ler os livros situados na primeira metade da formação em U da biblioteca. Demoro tempo a saborear as palavras, os cheiros dos tomos, a imaginar a acção. Desconheço há quanto tempo aqui estou. Não conto o tempo. Durante o dia interno-me no nicho mais obscuro que encontro, dentro da casa cujas restantes divisões investiguei, e leio o Tao Te King de Lao Tse cem vezes. Mil vezes. Até a luz solar partir. Então retorno à biblioteca. E prossigo. Sem nunca deixar de sentir as picadas depauperantes da fome. Por vezes vou ter com Aníbal e leio algumas passagens das obras. Não devia, mas tenho pena dele. Não tem sequer o escape da morte. Para mim a morte é possível ainda. Pesquiso sobre o assunto, na ciência, na ficção. Como poderá um vampiro morrer de facto? Não confio nos mitos. Um dia quando for assolapada pelo desejo da morte, desconfio que rapidamente descobrirei um método, ou melhor, que outros o descobrirão por mim, basta dar-lhes a oportunidade.
O espelho reflecte a imagem de um corpo anoréctico. Evangeline não estava assim. Pondero que em trezentos anos acumulou força e poder. Era preciso muito para a quebrar. Eu nunca bebi sangue, nunca me alimentei. Talvez esta seja a via para a morte inevitável. As picadas da fome por vezes desvanecem e a cabeça fica-me leve. Retornam menos fortes. Mas a presença da fome é suprema. Diminui de força em apenas um a dois por cento. Quantos anos levarei até que desapareça? Até me tornar um esqueleto vivo?
Escuto passos e a seguir o abrir da porta da entrada. Assusto-me como um animal acossado, um coelho perseguido por cães de caça. Escondo-me atrás da estante. Domino-me e avanço para ver dois miúdos com cerca de dezasseis anos.
- Vamos embora – diz o rapaz, alarmado.
- Não, vamos ver o resto – contrapõe a rapariga, imprudente e vítima da mesma curiosidade que eu.
Mas ele não a ouve. Agarra-a pelo pulso e leva-a daqui para fora. Nunca mais voltaram. Não consigo reprimir o pensamento de que tinham os dois um ar apetitoso. E as roupas. Eram... diferentes. Há quantos anos estou cá?
Nessa noite arrisco ir à rua. Avanço cinco tímidos passos após transpor a porta. Rapidamente volto atrás, com o terror do que poderia encontrar lá fora. Que horrores me esperam ali? Prefiro ficar. Aqui estou segura. É ainda cedo para morrer. Não acabei de ler os livros.
Li a biblioteca inteira mais do que uma vez. Há várias semanas que não consigo ignorar a fome, como dantes conseguia. Mergulho a atenção no Livro da Via e da Virtude de Lao Tse.
Lê-lo é como fazer auto-hipnose. Este livro é a minha salvação.
Então, de repente, a meio da leitura, sinto uma presença atrás de mim.
Volto-me e vejo Evangeline. Ela regressou.
Quer levar-me com ela.
Quer que eu seja a sua companheira, a sua irmã. De infortúnio. Os vampiros, na terra, duram muito pouco e ela está sozinha. Só, como eu.
Traz-me sangue dentro de uma geladeira de aspecto futurista. Não reconheço o design demasiado avançado. Está repleta. Não esperava encontrar-me viva. Veio, mesmo assim.
E eu... bebo. Esgoto o sangue em minutos. Bebo cada gota. Como se bebesse, sedenta, de uma nascente de pura água fresca. E de súbito sinto brotar em mim uma misteriosa força anteriormente adormecida.
Escrevo no presente porque é nele que vivo há décadas – um presente infernal.
Aceito a fome. Aceito que a devo saciar. Aceito-me.
Vou com Evangeline. A porta da casa cerra-se, por fim.
A quem ler isto: fecha tu também a porta pelo lado de fora. Eu posso voltar. Eu posso já estar aí no interior. A observar-te. Das trevas.
E com fome.
Muita fome.
FIM
27 de Julho de 2005
(Restantes capítulos aqui.)
sábado, julho 23, 2005
O tipo era brasileiro.
"Polícia britânica confunde brasileiro com terrorista e mata
A Scotland Yard matou o mineiro Jean Charles de Menezes, 27, na estação de Stockwell, no sul de Londres, após tê-lo confundido ontem com terrorista ligado aos ataques de quinta-feira (21) na capital britânica. Menezes era natural de Gonzaga, no interior de Minas, e vivia há cerca de quatro anos em Londres como eletricista.
(...)
Hoje, a Scotland Yard admitiu o erro. A versão da polícia britânica é a que o homem foi atingido cinco vezes na cabeça depois de ter se recusado a obedecer a ordens da polícia de parar dentro de um vagão do metrô."
Um homem morrer nestas circunstâncias é uma tragédia e a Polícia Metropolitana lamenta", afirmou a Scotland Yard.
A ação ocorreu na estação de Oval, também no sul de Londres, onde na quinta-feira um suposto terrorista deixou uma mochila com uma bomba que não chegou a explodir. Ainda segundo a polícia britânica, o homem tinha saído antes de uma casa que era vigiada pelas forças de ordem por suspeitas de que pudesse ter um vínculo com os atentados de quinta-feira contra três estações do metrô e um ônibus.
Menezes teria pulado as barreiras da estação e entrado em um vagão de trem sem atender às ordens dos policiais(...)."
"Polícia britânica confunde brasileiro com terrorista e mata
A Scotland Yard matou o mineiro Jean Charles de Menezes, 27, na estação de Stockwell, no sul de Londres, após tê-lo confundido ontem com terrorista ligado aos ataques de quinta-feira (21) na capital britânica. Menezes era natural de Gonzaga, no interior de Minas, e vivia há cerca de quatro anos em Londres como eletricista.
(...)
Hoje, a Scotland Yard admitiu o erro. A versão da polícia britânica é a que o homem foi atingido cinco vezes na cabeça depois de ter se recusado a obedecer a ordens da polícia de parar dentro de um vagão do metrô."
Um homem morrer nestas circunstâncias é uma tragédia e a Polícia Metropolitana lamenta", afirmou a Scotland Yard.
A ação ocorreu na estação de Oval, também no sul de Londres, onde na quinta-feira um suposto terrorista deixou uma mochila com uma bomba que não chegou a explodir. Ainda segundo a polícia britânica, o homem tinha saído antes de uma casa que era vigiada pelas forças de ordem por suspeitas de que pudesse ter um vínculo com os atentados de quinta-feira contra três estações do metrô e um ônibus.
Menezes teria pulado as barreiras da estação e entrado em um vagão de trem sem atender às ordens dos policiais(...)."
"(...)the suspect jumped on the train. Two witnesses said that as he entered the train he tripped, ending up half in and half out of the carriage, on all fours. Within seconds, as the clock tower outside the station chimed 10am, the officers caught up with the man and pushed him hard to the floor. Witnesses said that they then fired up to five bullets into him at close range, killing him instantly."
Link para a notícia.
Vejam lá, no Metro, se estão atrasados ou uma merda qualquer: não corram. Ainda levam com cinco tiros nos cornos.
Eu, realmente, acho que é preciso ter muita coragem para disparar cinco vezes sobre um homem Já Dominado.
G'anda polícia britânica. Fáxavor. Estilo do caraças.
Link para a notícia.
Vejam lá, no Metro, se estão atrasados ou uma merda qualquer: não corram. Ainda levam com cinco tiros nos cornos.
Eu, realmente, acho que é preciso ter muita coragem para disparar cinco vezes sobre um homem Já Dominado.
G'anda polícia britânica. Fáxavor. Estilo do caraças.
sexta-feira, julho 22, 2005
Capítulo 12 d' A Imortalidade
“Passei a vida a fugir, a correr de um lado para o outro para evitar ser descoberta, capturada e destruída. Tudo o que eu sempre quis foi permanecer num sítio e ter um lar e uma família para amar e que me amasse e aceitasse tal como sou. Mas fui obrigada a fugir, a fugir sempre. O dinheiro pode solucionar certas dificuldades, mas não as piores, há casos de que nem toda a prata do mundo te salva. Conheci outros como eu, sem engenho, mortos em poucas horas, poucos dias ou semanas. Os mais argutos sobreviveram um a dois anos.”
Silencia-se e analisa-me a fisionomia, tendo a satisfação discreta de presenciar a crescente evidência do medo no meu rosto entorpecido.
Prossegue.
Noto que não tem pressa em partir. Depois de sete anos fechada não correu para o exterior. Após tanto tempo, compreendo, precisa de alguém a quem contar a verdade. E eu não posso fugir. Desta vez sou eu que estou presa. A psicóloga de serviço.
“Passei a vida a correr, a esgueirar-me, a abandonar tudo. A escapar-me às crescentes interrogações dos outros, ao seu olhar inquiridor, às questões às quais não dava resposta ou resposta vaga e insuficiente. Estou farta, farta de não poder ser eu própria. Nos momentos de desespero indescritível contemplei com seriedade a hipótese de terminar a vida.”
Mas mudava de ideias na manhã seguinte.
O desejo de viver era forte demais.
O dinheiro permitiu uma liberdade inicial, porém cedo realizou que a verdadeira segurança estava noutro sítio: fazendo parte de famílias mortais, como criada ou governanta ou ama ou enfermeira. Vivendo como eles. Ingerindo da sua comida e bebida e mais tarde vomitando-as por não poder suportá-las. Mas, pela segurança de estar num meio familiar, e também pelo desejo de ser integrada numa verdadeira família, ela fazia os sacrifícios necessários.
Teve vidas piores e melhores.
É o que lhes chama: vidas.
(Continua.)
“Passei a vida a fugir, a correr de um lado para o outro para evitar ser descoberta, capturada e destruída. Tudo o que eu sempre quis foi permanecer num sítio e ter um lar e uma família para amar e que me amasse e aceitasse tal como sou. Mas fui obrigada a fugir, a fugir sempre. O dinheiro pode solucionar certas dificuldades, mas não as piores, há casos de que nem toda a prata do mundo te salva. Conheci outros como eu, sem engenho, mortos em poucas horas, poucos dias ou semanas. Os mais argutos sobreviveram um a dois anos.”
Silencia-se e analisa-me a fisionomia, tendo a satisfação discreta de presenciar a crescente evidência do medo no meu rosto entorpecido.
Prossegue.
Noto que não tem pressa em partir. Depois de sete anos fechada não correu para o exterior. Após tanto tempo, compreendo, precisa de alguém a quem contar a verdade. E eu não posso fugir. Desta vez sou eu que estou presa. A psicóloga de serviço.
“Passei a vida a correr, a esgueirar-me, a abandonar tudo. A escapar-me às crescentes interrogações dos outros, ao seu olhar inquiridor, às questões às quais não dava resposta ou resposta vaga e insuficiente. Estou farta, farta de não poder ser eu própria. Nos momentos de desespero indescritível contemplei com seriedade a hipótese de terminar a vida.”
Mas mudava de ideias na manhã seguinte.
O desejo de viver era forte demais.
O dinheiro permitiu uma liberdade inicial, porém cedo realizou que a verdadeira segurança estava noutro sítio: fazendo parte de famílias mortais, como criada ou governanta ou ama ou enfermeira. Vivendo como eles. Ingerindo da sua comida e bebida e mais tarde vomitando-as por não poder suportá-las. Mas, pela segurança de estar num meio familiar, e também pelo desejo de ser integrada numa verdadeira família, ela fazia os sacrifícios necessários.
Teve vidas piores e melhores.
É o que lhes chama: vidas.
(Continua.)
Capítulo 11 d' A Imortalidade
Abro os olhos. Não vejo nada. Está escuro. Sou de pedra! Por Deus, sou de pedra. Oiço um riso débil, ao fundo. Depois, por cima do meu rosto aparece o de Evangeline, sorridente. Consigo distingui-la a ela, aos olhos azuis, aos dentes pontiagudos e perfeitos, mas como se envolta numa faixa de gaze. O seu cabelo roça-me a pele, mas não o sinto. Eu não sinto nada, nada!
Evangeline debruça-se sobre o meu corpo, pega com cuidado em mim e leva-me para o sofá. Estou desconjuntada, como uma velha boneca de trapos, tal qual os cadáveres que, antes de enrijarem, ficam moles, flácidos. Não sinto o seu toque na pele, não sinto a pressão dos braços na carne. Súbito apercebo-me que não discirno já o cheiro da sala, que a minha boca não tem sabor e que o silêncio me chega entrecortado, desconectado, por entre os ligeiros ruídos feitos pelos movimentos de Evangeline. É isto a morte. É este o verdadeiro inferno. A curiosidade perdeu-me. Nunca serei absolvida por este pecado.
Evangeline segura um objecto frente aos meus olhos.
A chave.
Continua exibindo o discreto sorriso de triunfo.
Ela subtraiu-ma. Surripiou-a quando me agarrou e prendeu. Por isso é que me largou de imediato. Já tinha o desejado. Compreendo que o sono e cansaço juntos fizeram com que não prestasse atenção. Se estivesse atenta notaria que fizera o mesmo a Aníbal: o agarrara, depois de beber o sangue, por motivo idêntico, tirar-lhe a chave. Revistá-lo. Mas ele escapou-se. Era essa a sua estratégia. Aproveitar o instante de indisposição e furtar-lha. Não resultou. Comigo sim. Porque sou idiota e dada a tentações. Enfim o abismo derradeiro está comigo, aqui, e habitar-me-á até ao final dos tempos. Fui tão burra que me esqueci estar ainda em posse da chave.
Guarda-a num colar que põe em redor do pescoço. Diviso-a com maior nitidez. Descaio, no sofá, ficando numa posição patética, mas ela não se ri. De ar compenetrado acomoda as almofadas à volta do meu corpo para que fique direita, fitando-a.
E começa.
A contar-me a verdade.
“Mortal idiota”, diz. “Imbecil. Julgas que após três séculos a sobreviver eu morreria ali, naquele antro? Julgas que não escaparia? Em trezentos anos escapei a situações piores do que esta. Quase fui queimada, enforcada, decapitada, mas consegui sempre esconder a condição imortal de humanos menos infortunados de inteligência do que tu. Apodreci neste cativeiro aviltante por sete longos anos. Aníbal é de pedra há seis anos e meio. E tu...
O teu destino não será menos terrível.
Vês o quadro?
O vestido. Ele mandou-o pintar, dez anos após termos sido retratados. Originalmente visto a farda de ama. Sim, eu era a ama de Aníbal. Desde os seus oito anos. Ali tinha dez anos.”
Estou desprovida de sensações. Nem o meu corpo pode expressar o terror que sofro na alma. Não sinto o coração galopar nem arrepios a percorrerem a espinha nem os pêlos da carne a alvorarem de medo. Nem sequer o som da respiração. Eu já não respiro. Eu já não respiro.
A primeira coisa que fez, quando foi transformada em vampira, foi dirigir-se à casa materna e comer a mãe, os irmãos e irmãs, tal era a força selvagem da sua fome.
Mas fora movida também pelo ódio e fundo ressentimento. Ela tinha-me mentido o tempo todo. Porque não dei eu ouvidos ao instinto? A sua família de sangue desprezava-a. Porque se amancebara. Porque, conforme as normas morais da época, era uma pobre alma perdida, merecedora de compaixão na teoria, mas recebendo na prática apenas mirares e epítetos acusadores. Evangeline não tivera escolha. Ou se amancebava ou morria à fome. Escolheu viver. Essa é a sua força: ela escolhe sempre a vida, seja qual a forma. A mãe cuspiu-lhe na cara o asco azedo do seu ódio. A mãe não amava os filhos, tinha-os, mas não os amava. E a pobreza crónica agudizava o desafecto. Dos irmãos e irmãs, de quem esperava a mínima compreensão, colheu pauladas, nomes vis, pontapés, estaladas, murros e a expulsão de casa, de onde saiu correndo, tapando os seios por lhe terem rasgado o vestido.
Voltou uma vez para reatar relações, meses após se ter mudado para a residência de D. Raimundo. Tencionava amaciar-lhes a disposição com o dinheiro do amante. Trouxe uma bolsa com moedas de prata. Recebeu tratamento idêntico e ainda lhe roubaram a bolsa sem se dignarem a um simples obrigado. Quando o dinheiro acabou dois irmãos visitaram-na exigindo mais, como reparação das ofensas insanáveis causadas por ela ao nome honesto da família. D. Raimundo entrou a meio da discussão, atraído pelo berreiro. Ao conhecer o sucedido mandou os criados expulsar os intrusos e pôs Evangeline de cama durante uma semana, depois de a ter gravemente sovado, por ter tido a audácia de se apropriar do seu dinheiro.
Evangeline era uma alma infeliz. D. Raimundo mantinha-a quase tão pobre como antes, mas ao menos possuía o conforto que jamais julgara ter ou merecer: um telhado sobre a cabeça, os seus próprios aposentos, e comida farta sobre a mesa. Não passar fome era o superior dos luxos. Mesmo as vestes baratas que lhe comprava eram mais sumptuosas do que os trapos de antigamente. Não lhe dava dinheiro, porém. Tratava as moedas de ouro e prata como filhos dilectos, acariciando-as, prodigalizando festas ao metal luzente e roçando os lábios nas bolsas cheias. Ter Evangeline subtraído uma das bolsas menos gordas das centenas que D. Raimundo possuía, foi como uma ataque à sua essência, um golpe profundo no coração. Evangeline aprendeu com a experiência e nunca mais se aproximou, nem sonhos, do dinheiro.
Odiava o velho igualmente por outras razões. O seu toque nojento, asqueroso, fedido, que tinha de suportar na pele, noite após noite, causava-lhe uma intensa náusea e crescente desprezo e animosidade. Ele servia-se dela sem considerações pelo seu pudor nem respeito pelo corpo. Usava-a como um alforge é usado para ter coisas, objectos. Engravidava-a vezes seguidas, pouco se incomodando com as recomendações dos físicos que lhe diziam ser a morte de Evangeline segura se tornasse a emprenhar. Não obstante persistia a forçar-se a ela, noites seguidas. Que lhe importavam os abortos sucessivos? Ao menos não lhe nasciam bastardos. Que lhe importava que morresse? Bastava arranjar outra jovem esfomeada que consentisse os maltratos em troca de comida. Arranjaria outra encardida, outra pequena rameira que iria educar primorosamente. Esta tinha-lhe dado certos trabalhos. Podia morrer à vontade. A próxima seria mais submissa.
Mais submissa que Evangeline, à época, seria impossível encontrar. Ela fazia os possíveis para não ser vista, não ser notada. Não abria a boca e concordava com o que quer que D. Raimundo proferisse, se acaso lhe dirigisse a palavra, o que raramente acontecia. Até os criados a menosprezavam, considerando a sua condição inferior à deles por ser barregã.
O toque e cheiros emanados de D. Raimundo: isso era o pior de tudo, mas cerrava os olhos e esperava que retirasse o seu corpo pesado e fedorento de cima de si, tentando adormecer rapidamente.
Foi, já saciada de uma maneira que nunca a comida o fizera, ao encontro de D. Raimundo. Mas descobriu que havia lugar para muito mais do que consumira. Se não da carne, pelo menos do sangue.
Encontrou-o a contar as suas amadas sacas de dinheiro. Sem se dignar a olhá-la ordenou com rispidez que se fosse, mas, compreendendo que Evangeline permanecia quieta, ergueu-se na intenção de a disciplinar com as costas da mão fechada quando, para seu indizível horror, viu que estava coberta dos cabelos aos pés de sangue molhado, seco e em vias de coagulação. Tentou gritar, debalde porque emudecera de um momento para o outro. Evangeline avançou para a mesa e ele recuou, encolhendo-se debaixo dela, espalhou o pecúlio de uma saca pela divisão num movimento de braço seco e brutal. A seguir baixou-se, puxou-o para fora do refúgio e antes de o matar torturou-o lentamente, arrancando pedaços largos de carne: parte do rosto, das coxas nutridas, da barriga das pernas, do estômago amplo e dos braços, deliciando-se no sangue que acabou por cuspir por não querer mais nenhum dos seus fluidos repulsivos a circularem-lhe no corpo.
Evangeline ficou com o tecido das vestes de D. Raimundo preso nos dentes. Retirou-o e decidiu ser aconselhável guardar o ouro, levá-lo consigo. Por esta altura a sua força já era espantosa e tinha também esquematizado o plano que lhe permitiria escapar e começar vida nova, incógnita, longe daquele pardieiro e dos que a haviam injuriado. Partiria. Iria viajar. Conhecer novas terras.
Matou os criados, um a um, e saiu, depois, em busca de uma jovem mulher burguesa da sua estatura e do seu tipo físico. Não importavam semelhanças de rosto. Ela resolveria isso.
Se eu pudesse sentir, estremeceria, mas os sentidos continuam num embotamento obstinado.
Encontrou-a facilmente.
Na noite escura e sem lua Evangeline via claramente como se fosse dia e possuísse olhos felinos.
Quebrou-lhe o pescoço e pô-la em cima do ombro como uma saca de batatas quase vazia. Em casa vestiu-a com as suas roupas, que depois rasgou em parte, e em seguida mordeu-lhe a carne ainda morna. Por fim com os dentes e as garras afiadas arrancou-lhe o rosto.
Deu um último olhar avaliador à casa onde viveu dez anos, agora mergulhada no caos e coberta de sangue pelo chão, móveis e paredes, antes de amarrar o saco à cintura contendo as moedas de ouro e prata e partir envolta numa capa castanha escura que a cobria de cima a baixo. Tomara banho e vestira as vestes da jovem burguesa.
Soube, anos mais tarde, que a manha resultara: julgaram-na morta e condenaram dois pobres desgraçados que nada tinham a ver com o massacre. Evangelina não mostrou arrependimento com a sua morte indevida.
- Ah – inclina-se para a frente, os nossos olhos estão ao mesmo nível, - a luz do dia não nos mata – confessa, risonha.
Outra mentira. Apenas outra das dezenas com que me alimentou.
Permanece a observar-me, sem se recolher para trás, expectante de algo, talvez da luz do reconhecimento no meu espírito
- Percebeste? – pergunta, enfim.
- Pisca os olhos se percebeste.
Não faço nada. De facto não entendo o que me tenta dizer.
- A luz do dia...
Detém-se.
- ... não nos mata.
E de imprevisto faz-se luz. É claro, claríssimo como água. Súbito as anteriores palavras descortinam o verdadeiro significado: o teu destino não será menos terrível.
Ela transformou-me num destes horríveis seres! Ela converteu-me num ser vampírico! Condenada à imortalidade!
Serei como ela. Deus Nosso Senhor! Como ela...
Abro os olhos. Não vejo nada. Está escuro. Sou de pedra! Por Deus, sou de pedra. Oiço um riso débil, ao fundo. Depois, por cima do meu rosto aparece o de Evangeline, sorridente. Consigo distingui-la a ela, aos olhos azuis, aos dentes pontiagudos e perfeitos, mas como se envolta numa faixa de gaze. O seu cabelo roça-me a pele, mas não o sinto. Eu não sinto nada, nada!
Evangeline debruça-se sobre o meu corpo, pega com cuidado em mim e leva-me para o sofá. Estou desconjuntada, como uma velha boneca de trapos, tal qual os cadáveres que, antes de enrijarem, ficam moles, flácidos. Não sinto o seu toque na pele, não sinto a pressão dos braços na carne. Súbito apercebo-me que não discirno já o cheiro da sala, que a minha boca não tem sabor e que o silêncio me chega entrecortado, desconectado, por entre os ligeiros ruídos feitos pelos movimentos de Evangeline. É isto a morte. É este o verdadeiro inferno. A curiosidade perdeu-me. Nunca serei absolvida por este pecado.
Evangeline segura um objecto frente aos meus olhos.
A chave.
Continua exibindo o discreto sorriso de triunfo.
Ela subtraiu-ma. Surripiou-a quando me agarrou e prendeu. Por isso é que me largou de imediato. Já tinha o desejado. Compreendo que o sono e cansaço juntos fizeram com que não prestasse atenção. Se estivesse atenta notaria que fizera o mesmo a Aníbal: o agarrara, depois de beber o sangue, por motivo idêntico, tirar-lhe a chave. Revistá-lo. Mas ele escapou-se. Era essa a sua estratégia. Aproveitar o instante de indisposição e furtar-lha. Não resultou. Comigo sim. Porque sou idiota e dada a tentações. Enfim o abismo derradeiro está comigo, aqui, e habitar-me-á até ao final dos tempos. Fui tão burra que me esqueci estar ainda em posse da chave.
Guarda-a num colar que põe em redor do pescoço. Diviso-a com maior nitidez. Descaio, no sofá, ficando numa posição patética, mas ela não se ri. De ar compenetrado acomoda as almofadas à volta do meu corpo para que fique direita, fitando-a.
E começa.
A contar-me a verdade.
“Mortal idiota”, diz. “Imbecil. Julgas que após três séculos a sobreviver eu morreria ali, naquele antro? Julgas que não escaparia? Em trezentos anos escapei a situações piores do que esta. Quase fui queimada, enforcada, decapitada, mas consegui sempre esconder a condição imortal de humanos menos infortunados de inteligência do que tu. Apodreci neste cativeiro aviltante por sete longos anos. Aníbal é de pedra há seis anos e meio. E tu...
O teu destino não será menos terrível.
Vês o quadro?
O vestido. Ele mandou-o pintar, dez anos após termos sido retratados. Originalmente visto a farda de ama. Sim, eu era a ama de Aníbal. Desde os seus oito anos. Ali tinha dez anos.”
Estou desprovida de sensações. Nem o meu corpo pode expressar o terror que sofro na alma. Não sinto o coração galopar nem arrepios a percorrerem a espinha nem os pêlos da carne a alvorarem de medo. Nem sequer o som da respiração. Eu já não respiro. Eu já não respiro.
A primeira coisa que fez, quando foi transformada em vampira, foi dirigir-se à casa materna e comer a mãe, os irmãos e irmãs, tal era a força selvagem da sua fome.
Mas fora movida também pelo ódio e fundo ressentimento. Ela tinha-me mentido o tempo todo. Porque não dei eu ouvidos ao instinto? A sua família de sangue desprezava-a. Porque se amancebara. Porque, conforme as normas morais da época, era uma pobre alma perdida, merecedora de compaixão na teoria, mas recebendo na prática apenas mirares e epítetos acusadores. Evangeline não tivera escolha. Ou se amancebava ou morria à fome. Escolheu viver. Essa é a sua força: ela escolhe sempre a vida, seja qual a forma. A mãe cuspiu-lhe na cara o asco azedo do seu ódio. A mãe não amava os filhos, tinha-os, mas não os amava. E a pobreza crónica agudizava o desafecto. Dos irmãos e irmãs, de quem esperava a mínima compreensão, colheu pauladas, nomes vis, pontapés, estaladas, murros e a expulsão de casa, de onde saiu correndo, tapando os seios por lhe terem rasgado o vestido.
Voltou uma vez para reatar relações, meses após se ter mudado para a residência de D. Raimundo. Tencionava amaciar-lhes a disposição com o dinheiro do amante. Trouxe uma bolsa com moedas de prata. Recebeu tratamento idêntico e ainda lhe roubaram a bolsa sem se dignarem a um simples obrigado. Quando o dinheiro acabou dois irmãos visitaram-na exigindo mais, como reparação das ofensas insanáveis causadas por ela ao nome honesto da família. D. Raimundo entrou a meio da discussão, atraído pelo berreiro. Ao conhecer o sucedido mandou os criados expulsar os intrusos e pôs Evangeline de cama durante uma semana, depois de a ter gravemente sovado, por ter tido a audácia de se apropriar do seu dinheiro.
Evangeline era uma alma infeliz. D. Raimundo mantinha-a quase tão pobre como antes, mas ao menos possuía o conforto que jamais julgara ter ou merecer: um telhado sobre a cabeça, os seus próprios aposentos, e comida farta sobre a mesa. Não passar fome era o superior dos luxos. Mesmo as vestes baratas que lhe comprava eram mais sumptuosas do que os trapos de antigamente. Não lhe dava dinheiro, porém. Tratava as moedas de ouro e prata como filhos dilectos, acariciando-as, prodigalizando festas ao metal luzente e roçando os lábios nas bolsas cheias. Ter Evangeline subtraído uma das bolsas menos gordas das centenas que D. Raimundo possuía, foi como uma ataque à sua essência, um golpe profundo no coração. Evangeline aprendeu com a experiência e nunca mais se aproximou, nem sonhos, do dinheiro.
Odiava o velho igualmente por outras razões. O seu toque nojento, asqueroso, fedido, que tinha de suportar na pele, noite após noite, causava-lhe uma intensa náusea e crescente desprezo e animosidade. Ele servia-se dela sem considerações pelo seu pudor nem respeito pelo corpo. Usava-a como um alforge é usado para ter coisas, objectos. Engravidava-a vezes seguidas, pouco se incomodando com as recomendações dos físicos que lhe diziam ser a morte de Evangeline segura se tornasse a emprenhar. Não obstante persistia a forçar-se a ela, noites seguidas. Que lhe importavam os abortos sucessivos? Ao menos não lhe nasciam bastardos. Que lhe importava que morresse? Bastava arranjar outra jovem esfomeada que consentisse os maltratos em troca de comida. Arranjaria outra encardida, outra pequena rameira que iria educar primorosamente. Esta tinha-lhe dado certos trabalhos. Podia morrer à vontade. A próxima seria mais submissa.
Mais submissa que Evangeline, à época, seria impossível encontrar. Ela fazia os possíveis para não ser vista, não ser notada. Não abria a boca e concordava com o que quer que D. Raimundo proferisse, se acaso lhe dirigisse a palavra, o que raramente acontecia. Até os criados a menosprezavam, considerando a sua condição inferior à deles por ser barregã.
O toque e cheiros emanados de D. Raimundo: isso era o pior de tudo, mas cerrava os olhos e esperava que retirasse o seu corpo pesado e fedorento de cima de si, tentando adormecer rapidamente.
Foi, já saciada de uma maneira que nunca a comida o fizera, ao encontro de D. Raimundo. Mas descobriu que havia lugar para muito mais do que consumira. Se não da carne, pelo menos do sangue.
Encontrou-o a contar as suas amadas sacas de dinheiro. Sem se dignar a olhá-la ordenou com rispidez que se fosse, mas, compreendendo que Evangeline permanecia quieta, ergueu-se na intenção de a disciplinar com as costas da mão fechada quando, para seu indizível horror, viu que estava coberta dos cabelos aos pés de sangue molhado, seco e em vias de coagulação. Tentou gritar, debalde porque emudecera de um momento para o outro. Evangeline avançou para a mesa e ele recuou, encolhendo-se debaixo dela, espalhou o pecúlio de uma saca pela divisão num movimento de braço seco e brutal. A seguir baixou-se, puxou-o para fora do refúgio e antes de o matar torturou-o lentamente, arrancando pedaços largos de carne: parte do rosto, das coxas nutridas, da barriga das pernas, do estômago amplo e dos braços, deliciando-se no sangue que acabou por cuspir por não querer mais nenhum dos seus fluidos repulsivos a circularem-lhe no corpo.
Evangeline ficou com o tecido das vestes de D. Raimundo preso nos dentes. Retirou-o e decidiu ser aconselhável guardar o ouro, levá-lo consigo. Por esta altura a sua força já era espantosa e tinha também esquematizado o plano que lhe permitiria escapar e começar vida nova, incógnita, longe daquele pardieiro e dos que a haviam injuriado. Partiria. Iria viajar. Conhecer novas terras.
Matou os criados, um a um, e saiu, depois, em busca de uma jovem mulher burguesa da sua estatura e do seu tipo físico. Não importavam semelhanças de rosto. Ela resolveria isso.
Se eu pudesse sentir, estremeceria, mas os sentidos continuam num embotamento obstinado.
Encontrou-a facilmente.
Na noite escura e sem lua Evangeline via claramente como se fosse dia e possuísse olhos felinos.
Quebrou-lhe o pescoço e pô-la em cima do ombro como uma saca de batatas quase vazia. Em casa vestiu-a com as suas roupas, que depois rasgou em parte, e em seguida mordeu-lhe a carne ainda morna. Por fim com os dentes e as garras afiadas arrancou-lhe o rosto.
Deu um último olhar avaliador à casa onde viveu dez anos, agora mergulhada no caos e coberta de sangue pelo chão, móveis e paredes, antes de amarrar o saco à cintura contendo as moedas de ouro e prata e partir envolta numa capa castanha escura que a cobria de cima a baixo. Tomara banho e vestira as vestes da jovem burguesa.
Soube, anos mais tarde, que a manha resultara: julgaram-na morta e condenaram dois pobres desgraçados que nada tinham a ver com o massacre. Evangelina não mostrou arrependimento com a sua morte indevida.
- Ah – inclina-se para a frente, os nossos olhos estão ao mesmo nível, - a luz do dia não nos mata – confessa, risonha.
Outra mentira. Apenas outra das dezenas com que me alimentou.
Permanece a observar-me, sem se recolher para trás, expectante de algo, talvez da luz do reconhecimento no meu espírito
- Percebeste? – pergunta, enfim.
- Pisca os olhos se percebeste.
Não faço nada. De facto não entendo o que me tenta dizer.
- A luz do dia...
Detém-se.
- ... não nos mata.
E de imprevisto faz-se luz. É claro, claríssimo como água. Súbito as anteriores palavras descortinam o verdadeiro significado: o teu destino não será menos terrível.
Ela transformou-me num destes horríveis seres! Ela converteu-me num ser vampírico! Condenada à imortalidade!
Serei como ela. Deus Nosso Senhor! Como ela...
terça-feira, julho 19, 2005
Capítulo 10 d' A Imortalidade
O homem de pedra. Já que o foi na vida, assim permanecerá até ao final dos tempos.
Estou cansada. Nestas alturas é habitual a minha imaginação divagar. Saio do corpo, quase. O espírito solta-se e desliza, viaja para o mar onde escuto o eclodir oceânico das ondas, uma após outra, e me vejo sentada na areia, olhando a água e a espuma. Sozinha, sem ninguém ao redor. Posso ali ficar horas. Na praia, no interior da mente.
Aníbal cortou o pulso esquerdo com a faca, deixou escorrer o sangue para o copo e passou-o pelas barras. Evangeline aceitou-o fitando-o com um olhar sério e, em seguida, mordeu a mão, o monte de Vénus, fechou o punho, virou-o para o copo e os dois sangues misturaram-se.
Devolveu o copo a Aníbal que bebeu avidamente.
Ela deixou-o beber em êxtase arrebatado. Viu-o lamber o copo. Retirar com o dedo o mínimo vestígio de sangue. Observou-o, ávida, e na fisionomia o discreto sorriso da vingança animou-se, qual raiar de sol na paisagem invernosa. Aníbal sentiu-se subitamente indisposto, pensou que era de esperar, porém a náusea veloz cobriu-lhe a extensão da carne em segundos. Não compreendia. Evangeline nunca lhe descrevera isto. E num relampejar de consciência percebeu o que ela lhe fizera. Fitou-a de olhos arregalados, enclavinhando a mão enrugada no estômago. Percebeu que ela não lhe deu a vida, mas a morte. Vai morrer à mesma. Zonzo, cambaleou. “Porquê?”, exclamou, débil. Não atingiu haver pessoas que preferem a morte a cederem. Mas Evangeline não estava derrotada ainda. Quando ele se virou para o túnel ela projectou as mãos por entre a cela, agarrou o casaco e tentou prendê-lo, mas Aníbal escapou-se. Fugiu, aos arrastos, pelo chão frio do túnel.
E agora tem até ao fim deste ciclo temporal para se perguntar: porquê?, porquê? Porque o fez?
(Continua.)
O homem de pedra. Já que o foi na vida, assim permanecerá até ao final dos tempos.
Estou cansada. Nestas alturas é habitual a minha imaginação divagar. Saio do corpo, quase. O espírito solta-se e desliza, viaja para o mar onde escuto o eclodir oceânico das ondas, uma após outra, e me vejo sentada na areia, olhando a água e a espuma. Sozinha, sem ninguém ao redor. Posso ali ficar horas. Na praia, no interior da mente.
Aníbal cortou o pulso esquerdo com a faca, deixou escorrer o sangue para o copo e passou-o pelas barras. Evangeline aceitou-o fitando-o com um olhar sério e, em seguida, mordeu a mão, o monte de Vénus, fechou o punho, virou-o para o copo e os dois sangues misturaram-se.
Devolveu o copo a Aníbal que bebeu avidamente.
Ela deixou-o beber em êxtase arrebatado. Viu-o lamber o copo. Retirar com o dedo o mínimo vestígio de sangue. Observou-o, ávida, e na fisionomia o discreto sorriso da vingança animou-se, qual raiar de sol na paisagem invernosa. Aníbal sentiu-se subitamente indisposto, pensou que era de esperar, porém a náusea veloz cobriu-lhe a extensão da carne em segundos. Não compreendia. Evangeline nunca lhe descrevera isto. E num relampejar de consciência percebeu o que ela lhe fizera. Fitou-a de olhos arregalados, enclavinhando a mão enrugada no estômago. Percebeu que ela não lhe deu a vida, mas a morte. Vai morrer à mesma. Zonzo, cambaleou. “Porquê?”, exclamou, débil. Não atingiu haver pessoas que preferem a morte a cederem. Mas Evangeline não estava derrotada ainda. Quando ele se virou para o túnel ela projectou as mãos por entre a cela, agarrou o casaco e tentou prendê-lo, mas Aníbal escapou-se. Fugiu, aos arrastos, pelo chão frio do túnel.
E agora tem até ao fim deste ciclo temporal para se perguntar: porquê?, porquê? Porque o fez?
(Continua.)
sexta-feira, julho 15, 2005
mil e uma pequenas histórias
Parabéns! :)
Aqui fica a 1001.
Para andar, basta pôr um pé à frente do outro, e para se chegar ao fim, basta mais um passo. Escrever não é diferente, seja uma pequena história ou mil.
Parabéns! :)
Aqui fica a 1001.
Para andar, basta pôr um pé à frente do outro, e para se chegar ao fim, basta mais um passo. Escrever não é diferente, seja uma pequena história ou mil.
quinta-feira, julho 14, 2005
Em 2003 comecei a escrever Senhor Bentley, o Enraba-Passarinhos. Terminei-o em 2004 depois de uns meses de paragem. Eu escrevo melhor se tiver tempo para pensar nas personagens, na história. Podia tê-lo escrito num mês ou dois, mas não seria tão bom.
A 13 de Abril de 2004 enviei o manuscrito à editora Difel – recusa;
mandei-o à Temas e Debates a 17 de Maio e obtive recusa novamente;
concorri ao prémio literário de Loures – não ganhei;
remeti-o à Oficina do Livro - e de novo lá veio a carta de recusa;
despachei-o para a Âmbar (a recusa veio a 13 de Janeiro de 2005) e Asa a 9 de Novembro’04, a Asa devolveu-o a 15 de Novembro sem sequer o ter lido;
a 19 de Novembro enviei-o para a Bertrand Editora e até hoje espero resposta, tal como a espero da Bizâncio desde 27 de Novembro de 2004;
encaminhei o manuscrito, mais uma vez, para outra editora – a Cotovia – a 29 de Novembro’04 e conheci a recusa a 2 de Fevereiro de 2005;
mandei o Senhor Bentley para a Caixotim a 13 de Fevereiro e a recusa chegou a 13 de Maio’05;
da editora Âncora ela veio a 9 de Maio de 2005, depois de lhes ter enviado o livro a 10 de Março’05.
Bom, vou ser mais sucinta.
Afrontamento: mandei a 21 de Março de 2005, recusa a 6 de Abril.
Editorial Caminho: remeti o livro a 22 de Março de 2005. Sem resposta até hoje.
Relógio D’Água: 28 de Março de 2005. Sem resposta.
Presença: 15 de Abril’05. Recusa.
Editorial Notícias: 20 Abril’05. Sem resposta.
Edições Saída de Emergência: mandei o livro a 22 de Abril de 2005. Sem grande fé, esperando resultados idênticos aos anteriores.
Mas logo no dia a seguir ao editor ter recebido o manuscrito obtenho uma resposta positiva!
Em princípio Senhor Bentley, o Enraba-Passarinhos sairá no primeiro trimestre do ano de 2006.
P.S. Não contem. Eu poupo-vos o trabalho: foram 15.
[Correção: 16, aliás. A editora Q de 9 demonstrou interesse inicial, mas depois mudou de ideias. Até hoje não sei porquê.]
[Adenda: afinal foram 17. Esqueci-me de adicionar a editora Amores Perfeitos que queria que eu pagasse metade da edição.]
A 13 de Abril de 2004 enviei o manuscrito à editora Difel – recusa;
mandei-o à Temas e Debates a 17 de Maio e obtive recusa novamente;
concorri ao prémio literário de Loures – não ganhei;
remeti-o à Oficina do Livro - e de novo lá veio a carta de recusa;
despachei-o para a Âmbar (a recusa veio a 13 de Janeiro de 2005) e Asa a 9 de Novembro’04, a Asa devolveu-o a 15 de Novembro sem sequer o ter lido;
a 19 de Novembro enviei-o para a Bertrand Editora e até hoje espero resposta, tal como a espero da Bizâncio desde 27 de Novembro de 2004;
encaminhei o manuscrito, mais uma vez, para outra editora – a Cotovia – a 29 de Novembro’04 e conheci a recusa a 2 de Fevereiro de 2005;
mandei o Senhor Bentley para a Caixotim a 13 de Fevereiro e a recusa chegou a 13 de Maio’05;
da editora Âncora ela veio a 9 de Maio de 2005, depois de lhes ter enviado o livro a 10 de Março’05.
Bom, vou ser mais sucinta.
Afrontamento: mandei a 21 de Março de 2005, recusa a 6 de Abril.
Editorial Caminho: remeti o livro a 22 de Março de 2005. Sem resposta até hoje.
Relógio D’Água: 28 de Março de 2005. Sem resposta.
Presença: 15 de Abril’05. Recusa.
Editorial Notícias: 20 Abril’05. Sem resposta.
Edições Saída de Emergência: mandei o livro a 22 de Abril de 2005. Sem grande fé, esperando resultados idênticos aos anteriores.
Mas logo no dia a seguir ao editor ter recebido o manuscrito obtenho uma resposta positiva!
Em princípio Senhor Bentley, o Enraba-Passarinhos sairá no primeiro trimestre do ano de 2006.
P.S. Não contem. Eu poupo-vos o trabalho: foram 15.
[Correção: 16, aliás. A editora Q de 9 demonstrou interesse inicial, mas depois mudou de ideias. Até hoje não sei porquê.]
[Adenda: afinal foram 17. Esqueci-me de adicionar a editora Amores Perfeitos que queria que eu pagasse metade da edição.]
quarta-feira, julho 13, 2005
Digamos que, por hipótese, eu queira falar do Caso Casa Pia.
Com os pormenores todos.
Mas! Trocando o nome dos intervenientes por outros.
Tipo, chamo ao, coff, aquele gajo que tem um nome, tipo, assim, metalizado - chamo-lhe, por hipótese (estamos ao nível do hipotético, meus lindos), o Meireles.
Posso fazer isto sem correr o risco de ser processada por difamação?
Porque não há €€€€€ para andar a pagar a advogados e sei lá mais o quê.
Ou terei de esperar pela conclusão do julgamento? Mas aquela porcaria Nunca Mais Acaba! Vou esperar, quê, Dez Anos?!?!?!?
Quem tiver conhecimentos jurídicos, por favor elucide-me.
Se me disserem "não, não podes", lá chegarei à conclusão que afinal eu vivo em Portugal - a 24 de Abril de 1974.
Obrigada.
[Nevermind: parece que sim, que posso falar sobre o caso, hehe. * Does wicked smile*]
Com os pormenores todos.
Mas! Trocando o nome dos intervenientes por outros.
Tipo, chamo ao, coff, aquele gajo que tem um nome, tipo, assim, metalizado - chamo-lhe, por hipótese (estamos ao nível do hipotético, meus lindos), o Meireles.
Posso fazer isto sem correr o risco de ser processada por difamação?
Porque não há €€€€€ para andar a pagar a advogados e sei lá mais o quê.
Ou terei de esperar pela conclusão do julgamento? Mas aquela porcaria Nunca Mais Acaba! Vou esperar, quê, Dez Anos?!?!?!?
Quem tiver conhecimentos jurídicos, por favor elucide-me.
Se me disserem "não, não podes", lá chegarei à conclusão que afinal eu vivo em Portugal - a 24 de Abril de 1974.
Obrigada.
[Nevermind: parece que sim, que posso falar sobre o caso, hehe. * Does wicked smile*]
terça-feira, julho 12, 2005
sábado, julho 09, 2005
Descubra as diferenças 2
De quando em quando, cidadãos portugueses que vivem nos EUA desde os dois ou três anos de idade, e que nem português sabem falar, são deportados para Portugal (geralmente para os Açores) por via de algum crime cometido em solo americano. Quando isto acontece os portugueses indignam-se. E com razão. Afinal alguém que vive nos EUA desde os 2 anos de idade é um produto da sociedade americana, e não é correcto obrigar Portugal a receber essas pessoas que nem português sabem falar.
Frequentemente, cidadãos não-portugueses que nasceram em Portugal, e outra língua não sabem que não o português, são deportados de Portugal (geralmente para algum país africano) por terem cometido algum crime em solo português. Poucos se indignam. Não são notícia de abertura dos telejornais. Afinal, se é para causar distúrbios, que voltem para a terra deles.
Não gosto de preconceitos. Quando identifico um em mim tenho vergonha. E acho inconcebível que se usem argumentos rotos como a recusa do "politicamente correcto" ou a "criminalidade" ou a tal da "insegurança" para desculpar comportamentos e opiniões racistas e preconceituosos. Nós não temos vergonha (nós, portugueses) em sê-lo. Ao contrário, por exemplo, dos ingleses. Enfim, ao contrário de povos verdadeiramente civilizados. Nós ainda não somos civilizados. Para lá caminhamos. Mas vai levar o seu tempo. Estar na Europa é o que nos safa. De outra maneira não haveria salvação para o crónico atraso luso. Atraso em tudo, não só económico, mas espiritual, emocional, Ético, etc., etc., etc.
Às vezes é tão bom saber que não sou a única a pensar e sentir desta maneira. Não estou sozinha. Porque, em ocasiões, dá-me a sensação que estou.
É por isso que ponho este texto aqui.
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De quando em quando, cidadãos portugueses que vivem nos EUA desde os dois ou três anos de idade, e que nem português sabem falar, são deportados para Portugal (geralmente para os Açores) por via de algum crime cometido em solo americano. Quando isto acontece os portugueses indignam-se. E com razão. Afinal alguém que vive nos EUA desde os 2 anos de idade é um produto da sociedade americana, e não é correcto obrigar Portugal a receber essas pessoas que nem português sabem falar.
Frequentemente, cidadãos não-portugueses que nasceram em Portugal, e outra língua não sabem que não o português, são deportados de Portugal (geralmente para algum país africano) por terem cometido algum crime em solo português. Poucos se indignam. Não são notícia de abertura dos telejornais. Afinal, se é para causar distúrbios, que voltem para a terra deles.
Não gosto de preconceitos. Quando identifico um em mim tenho vergonha. E acho inconcebível que se usem argumentos rotos como a recusa do "politicamente correcto" ou a "criminalidade" ou a tal da "insegurança" para desculpar comportamentos e opiniões racistas e preconceituosos. Nós não temos vergonha (nós, portugueses) em sê-lo. Ao contrário, por exemplo, dos ingleses. Enfim, ao contrário de povos verdadeiramente civilizados. Nós ainda não somos civilizados. Para lá caminhamos. Mas vai levar o seu tempo. Estar na Europa é o que nos safa. De outra maneira não haveria salvação para o crónico atraso luso. Atraso em tudo, não só económico, mas espiritual, emocional, Ético, etc., etc., etc.
Às vezes é tão bom saber que não sou a única a pensar e sentir desta maneira. Não estou sozinha. Porque, em ocasiões, dá-me a sensação que estou.
É por isso que ponho este texto aqui.
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sexta-feira, julho 08, 2005
quinta-feira, julho 07, 2005
Capítulo 9 d'A Imortalidade
Tenho pena desta mulher. Pela primeira vez vejo-a como humana e não somente ser imortal, talvez superior aos mortais por ter vivido tanto. Uma deusa menor – era como a via. Entendo que as suas limitações são as limitações humanas. Entendo que ainda é humana. Nas palavras doridas intuo o rubro da alma. É forçoso que tenha alma, mas aprisionada naquele delgado corpo e carne pálida e bela, enredando-se nos cabelos áureos, e impossibilitada de escapar.
Os meus sentimentos de terror e desconfiança abrandam, juntamente com o bater do coração. Há quantas horas aqui permaneço? Não sei. Ela tem-me presa sem me prender. Poucos, até hoje, tiveram esse poder sobre mim.
Aníbal tentou efemeramente persuadi-la a dar-lhe a imortalidade. Era o único meio de enganar a morte. Franzo a testa. Que homem idiota. Prefere perder a alma a ganhar a verdadeira liberdade, pois que a morte traz a alforria, o cortar das limitações terrenas e fúteis. A morte despe e deixa à vista o espírito nu.
Tentou convencê-la por meio de palavras doces, vitimizadas súplicas, ameaças – sem êxito. Evangeline devolvia-lhe um olhar duro, imóvel, de ódio puro que substituíra o antigo amor, nada mais que a ilusão a que se pendera para poder lidar com a vida. Algures existia um homem que a amara e esse amor passado sustentara-lhe os dias.
A cruel realidade impunha-se, extirpando ficções com a dor da faca a esfolar pele viva. E agora era o asco que a alimentava e lhe escorava as horas.
Aníbal tem de a manter em boas condições físicas caso contrário a seiva de Evangeline não terá força suficiente para torná-lo num vampiro poderoso. O sangue fraco faria dele imortal, mas sofrendo à mesma de maleitas humanas, sem protegê-lo da intensa dor.
Por isso trazia-lhe comida. Rapazinhos e rapariguinhas para saciar a sua sede.
- O melhor sangue é o dos jovens – revela num malévolo tom espraiado dos olhos azuis em setas luzentes. – O vigor da juventude inunda-me e chego a sentir a capa da inocência que veste as crianças. É superior a todos.
Um arrepio palmilha-me de cima a baixo; os pêlos do corpo alvoram.
- Deus... – sussurro.
(Continua)
Tenho pena desta mulher. Pela primeira vez vejo-a como humana e não somente ser imortal, talvez superior aos mortais por ter vivido tanto. Uma deusa menor – era como a via. Entendo que as suas limitações são as limitações humanas. Entendo que ainda é humana. Nas palavras doridas intuo o rubro da alma. É forçoso que tenha alma, mas aprisionada naquele delgado corpo e carne pálida e bela, enredando-se nos cabelos áureos, e impossibilitada de escapar.
Os meus sentimentos de terror e desconfiança abrandam, juntamente com o bater do coração. Há quantas horas aqui permaneço? Não sei. Ela tem-me presa sem me prender. Poucos, até hoje, tiveram esse poder sobre mim.
Aníbal tentou efemeramente persuadi-la a dar-lhe a imortalidade. Era o único meio de enganar a morte. Franzo a testa. Que homem idiota. Prefere perder a alma a ganhar a verdadeira liberdade, pois que a morte traz a alforria, o cortar das limitações terrenas e fúteis. A morte despe e deixa à vista o espírito nu.
Tentou convencê-la por meio de palavras doces, vitimizadas súplicas, ameaças – sem êxito. Evangeline devolvia-lhe um olhar duro, imóvel, de ódio puro que substituíra o antigo amor, nada mais que a ilusão a que se pendera para poder lidar com a vida. Algures existia um homem que a amara e esse amor passado sustentara-lhe os dias.
A cruel realidade impunha-se, extirpando ficções com a dor da faca a esfolar pele viva. E agora era o asco que a alimentava e lhe escorava as horas.
Aníbal tem de a manter em boas condições físicas caso contrário a seiva de Evangeline não terá força suficiente para torná-lo num vampiro poderoso. O sangue fraco faria dele imortal, mas sofrendo à mesma de maleitas humanas, sem protegê-lo da intensa dor.
Por isso trazia-lhe comida. Rapazinhos e rapariguinhas para saciar a sua sede.
- O melhor sangue é o dos jovens – revela num malévolo tom espraiado dos olhos azuis em setas luzentes. – O vigor da juventude inunda-me e chego a sentir a capa da inocência que veste as crianças. É superior a todos.
Um arrepio palmilha-me de cima a baixo; os pêlos do corpo alvoram.
- Deus... – sussurro.
(Continua)
quarta-feira, julho 06, 2005
Ciberjus
Histórias da Justiça real
Em 2001, um indivíduo ouve o alarme do seu veículo, acorre e apanha o assaltante que agarra e apresenta à polícia a quem participa o crime.
Em 2003, batem à porta do mesmo indivíduo e ele verifica que se trata dum agente da autoridade que o vem notificar para comparecer em tribunal a fim de testemunhar no julgamento. Para seu espanto, a audiência para que é notificado, está marcada para Maio de 2005.
Em Junho de 2005, recebe uma notificação do tribunal comunicando-lhe que foi condenado na multa de 200 euros por não ter comparecido na referida audiência. Desloca-se ao tribunal para explicar porque se esquecera da data (dois anos é muito tempo) e fica a saber que o assaltante foi absolvido por falta de prova uma vez que ele era a testemunha da acusação.
Isto dá-me para rir para não ter de chorar.
Histórias da Justiça real
Em 2001, um indivíduo ouve o alarme do seu veículo, acorre e apanha o assaltante que agarra e apresenta à polícia a quem participa o crime.
Em 2003, batem à porta do mesmo indivíduo e ele verifica que se trata dum agente da autoridade que o vem notificar para comparecer em tribunal a fim de testemunhar no julgamento. Para seu espanto, a audiência para que é notificado, está marcada para Maio de 2005.
Em Junho de 2005, recebe uma notificação do tribunal comunicando-lhe que foi condenado na multa de 200 euros por não ter comparecido na referida audiência. Desloca-se ao tribunal para explicar porque se esquecera da data (dois anos é muito tempo) e fica a saber que o assaltante foi absolvido por falta de prova uma vez que ele era a testemunha da acusação.
Isto dá-me para rir para não ter de chorar.
domingo, julho 03, 2005
Capítulo seguinte da, hum, novela que ando a escrever para participar no Super desafio: Narrativa de ficção . O prazo termina a 20 de Agosto. Sim, deste ano. E sim, ainda têm tempo.
Deste vez coloco no blog o capítulo inteiro. (Restantes capítulos aqui.)
Capítulo 7
- A Imortalidade dá a volta à cabeça a qualquer um. Os humanos não foram desenhados para ela. Mas se o preço é alto é certo que vale a pena. Todos os prazeres que se obtêm, os próprios sentidos se afinam, e diante de nós estendem-se as Eras para experimentar o mundo e seus deleites. O mundo é dos imortais – conta.
- Não me parece que tenhas ficado muito contente de início.
- Isso mudou.
Evangeline está sentada no chão, as costas apoiadas à parede. Não me atrevo a aproximar-me. Sei que me agarrará e, para me causar o desmaio, usará o cheiro maldito. Percebo finalmente. É assim que faz as vítimas aquietarem-se. Não estou longe do túnel. Pronta para a fuga ágil.
- Em 1729 assisti ao matrimónio do príncipe D. José com D. Mariana de Bourbon. O fausto, a majestade do evento. Foi muito bonito. Sumptuoso. Continuava bela e jovem. A cada dia a minha beleza engrandecia. Convidavam-me para tudo. Tive amantes. E como não podia ter filhos diverti-me.
- Informaste D. Raimundo do facto?
Por um segundo olha-me de soslaio com má cara, mas desvia a vista e responde:
- Não quis preocupá-lo ainda mais. Não lhe podia dizer o que eu era. Um... outro ser. Nesses tempos uma palavra, por mais casta, dita no sítio desacertado, atraía os grifos da Inquisição. Se lho confidenciasse estava não só a colocar a minha vida em risco, mas também a dele. E a da minha pobre família.
Não contesto. Isso surpreende-a. Esperava que eu argumentasse. Prossegue o relato da sua existência nos três séculos. Conhecera festas e luxos intimamente; encetara viagens à volta do globo; vislumbrara coisas hoje incógnitas ou desaparecidas.
As suas palavras seduzem-me, atiçam-me o imaginário, despertando a adormecida vontade de viajar e conhecer o mundo. Tanto de mim foi abafado depois de me casar, por razões económicas como práticas como... por outras que nada têm a ver com o meu marido. Se não temos dinheiro nem vida para passar meses em viagem também é verdade que a ele o atrai a segurança quieta dos lugares que sempre conheceu. Não é homem de viagens e eu não posso peregrinar sozinha, fazer as minhas férias separadas, não porque mo proíba, não é ciumento, mas tão-só porque não temos possibilidades. E, de súbito, num jacto repentino, essa reprimida vontade de passear ressurge, atiçada nas palavras da vampira cativa. Pergunto-me porque me terei casado com ele. Somos distintos em aspectos fundamentais. Não consigo contar-lhe tudo e amordaço muito de mim para a relação não sofrer. Eu abdiquei mais do que ele, mas nunca o censuro por isso. A escolha foi e é minha. Mas porque o escolhi? Pela segurança que agora me oprime. Ele é a rocha que me impede de afundar. Providencia a sensação de solidez que me impede de lançar-me às águas escuras do abismo do meu lado negro. Não quero ser “boazinha”, mas das convidativas forças ocultas sei que não há retorno. Em ocasiões interrogo-me se me sabotei ao casar-me. Se esse abismo não será o meu destino derradeiro, apesar do que quer que eu empreenda para me afastar e levar uma vida normal.
Evangeline descreve paisagens de África em tempos coloniais; os nativos da Austrália e Nova Zelândia; os estranhos rituais da Índia. Não quero saber das horas. Não me importa. Quero ficar ali e sonhar, sonhar que sou eu a viajante incansável. Viajante verdadeira e não de livros pois somente através deles extingo um pouco a sede de partir sem rumo, sem bússola, sem propósito.
Não me incomoda o avançado da noite; se o meu marido chegou ou não a casa e encontra para jantar restos do almoço de ontem; se já é dia e me esperam no trabalho, para enviar facturas e se é o último dia para pagarmos a letra ao banco. Não quero saber. Fico. A escutá-la.
Subitamente Evangeline suspende o relato e observa-me fascinada pelo meu semblante atento, como uma criança no primeiro dia de escola.
- Continua.
- Não. Volta amanhã.
- Diz-me...
- Amanhã.
E depois disso recusa-se a falar, recolhendo para o fundo da sua prisão, cola-se à parede e eu deixo de a ver.
Ao meu marido, entrando em casa, não dou explicação nenhuma. Estou de muito mau humor. Receio dizer tudo sem conseguir parar. Ele não insiste porque me conhece a disposição.
No dia seguinte telefono para o emprego. Sim, continuo doente e não, não posso ir, estou indisponível durante uns dias.
Sinto que vale a pena perder o emprego por uma boa história – já que não a podemos viver.
- A luz do dia mata-te?
- Sim.
- Então como conseguiste viver ainda tanto tempo com D. Raimundo sem ele estranhar não saíres à luz do dia?
Esperava a pergunta.
- A minha passada fragilidade providenciou-me a desculpa necessária. Eu passava a maior parte do dia no leito e levantava-me após o sol-posto.
Evangeline alonga-se na narrativa; consegue descrever cada minúsculo detalhe, cada pormenor, põe os sabores das especiarias na minha boca e o ribombar dos sinos e rufar dos tambores nos meus ouvidos, e eu sinto-me lá, com ela, a sua sombra invisível.
Sou ingénua, admito. Basta pouco para me ganhar. Um elogio feito na hora certa. Se não fosse pela atenta vigilância dos meus pais, em criança teria seguido qualquer um, bastando que me oferecessem um sorriso terno, um doce gesto. O meu primo Dominique, mais velho dois anos, dedilhava, competente, essa corda em mim, contando-me histórias inacreditáveis. Convencia-me de tudo. Sim, à noite as máscaras de Carnaval ganham vida e mordem os pés dos dorminhocos (fê-lo várias vezes. Eu, aterrada, escondia-me debaixo dos lençóis). Na lua vivem gnomos verdes que nos roubam os presentes de Natal a não ser que os subornemos com doces e bolos. Adivinhem o intermediário destas trocas. Para não falar da altura em que fui caçar gambozinos com ele, munida de uma saca de serapilheira com o cheiro das batatas ainda fresco. Mas as suas histórias cativavam-me, prendiam-me. Vem dele o meu amor aos contos, às narrativas intrincadas e impossíveis. Fantásticas. Fora deste mundo. O meu primo Dominique, que eu adorava e adoro ainda, apesar de ter morrido num acidente de automóvel aos dezoito anos. Não morreu, não morrerá nunca, não enquanto eu oiça a sua fina voz de criança narrar-me contos singulares.
Mas se sou ingénua o facto é que Deus ou o destino ou a Natureza me dotaram de instrumentos para mitigar a candura. Quando algo não está bem, uma situação ou pessoa, sinto no estômago uma urgência, o corpo inteiro ecoa numa vibração desagradável. O espírito, ou o subconsciente, fala-me através da carne, da pele. Urge-me a que me distancie da situação, do indivíduo. A intuição jamais me falhou. Porém meto-me em problemas porque por vezes decido calá-la e escutar a voz da ingenuidade, da inocência. Quero acreditar que há mais inocentes neste mundo. Que o planeta é composto de inocentes. Que a pessoa à minha frente não representa um problema. É mentira, claro. Um auto-engano que me custa, no futuro.
Agora acode-me de novo a mesma intuição, a mesma premência do corpo, avisando-me do perigo. Sei que Evangeline me está a seduzir com a história e, se o permitir, provavelmente perderei a vida. Ela é como um mar calmo em que avanço, pouco a pouco, sem saber nadar, mas confiante, e de repente as águas agitam-se e eu estou demasiado longe da praia. A sua sedução é exemplar. Soube identificar em mim o ponto certo. Apercebo-me que foi essa a capacidade que a permitiu sobreviver durante séculos.
Levanto-me e parto sem dizer nada.
A sua cara demonstra pânico, os olhos muito abertos presos a mim, as mãos enganchadas nas barras.
- Não vás! Eu dou-te o que quiseres! Tudo, TUDO!
Já estou no túnel. Não me viro.
- A imortalidade! A IMORTALIDADE!
E então eu estaco. Uma onda de arrepio eléctrico, meio quente, meio fria, viaja dos meus pés à cabeça. O seu desespero deve ser colossal, penso. E novamente seduzida (não pela oferta, mas pela curiosidade que o seu terror me causou. Nas palavras gritadas eu senti uma verdade sua e pareceu-me, do início, que Evangeline poupava na verdade), retorno.
- Que farei eu com isso? Parra que me serve isso?
Fica uns segundos atabalhoada, sem saber responder.
- É uma dádiva... um dom se...
- Dom? Como o teu? Para acabar os meus dias como tu, sem sequer poder morrer? É esse o dom? Ou louca, como aquele que te fez assim?
- Não imaginas o que eu vivi, não podes imaginar. Cheguei ao futuro. O meu corpo é a máquina do tempo. Quero continuar a viajar no futuro. Também o podes fazer. Seremos companheiras.
- Não acredito. Tiro-te daí e a primeira coisa que fazes é matar-me. Não.
Engole em seco. Baixa os olhos. Não sabe como persuadir-me. Os olhos azuis perdem o brilho, momentaneamente esmaecem.
- Penso que é altura de começares a contar a verdade.
Ela fita-me num mudo espanto.
Sento-me, de pernas cruzadas, frente à cela.
- Diz-me a verdade. Depois julgarei se te liberto ou não.
Faço um jogo perigoso, mas o desejo de saber sobrepõe-se à precaução.
- Seja – e os lábios tornam-se duros, o olhar de mármore. Evangeline recupera a postura que denoto arrogante, além de esplêndida.
- A verdade.
- Comecemos pelo homem de pedra.
Deste vez coloco no blog o capítulo inteiro. (Restantes capítulos aqui.)
Capítulo 7
- A Imortalidade dá a volta à cabeça a qualquer um. Os humanos não foram desenhados para ela. Mas se o preço é alto é certo que vale a pena. Todos os prazeres que se obtêm, os próprios sentidos se afinam, e diante de nós estendem-se as Eras para experimentar o mundo e seus deleites. O mundo é dos imortais – conta.
- Não me parece que tenhas ficado muito contente de início.
- Isso mudou.
Evangeline está sentada no chão, as costas apoiadas à parede. Não me atrevo a aproximar-me. Sei que me agarrará e, para me causar o desmaio, usará o cheiro maldito. Percebo finalmente. É assim que faz as vítimas aquietarem-se. Não estou longe do túnel. Pronta para a fuga ágil.
- Em 1729 assisti ao matrimónio do príncipe D. José com D. Mariana de Bourbon. O fausto, a majestade do evento. Foi muito bonito. Sumptuoso. Continuava bela e jovem. A cada dia a minha beleza engrandecia. Convidavam-me para tudo. Tive amantes. E como não podia ter filhos diverti-me.
- Informaste D. Raimundo do facto?
Por um segundo olha-me de soslaio com má cara, mas desvia a vista e responde:
- Não quis preocupá-lo ainda mais. Não lhe podia dizer o que eu era. Um... outro ser. Nesses tempos uma palavra, por mais casta, dita no sítio desacertado, atraía os grifos da Inquisição. Se lho confidenciasse estava não só a colocar a minha vida em risco, mas também a dele. E a da minha pobre família.
Não contesto. Isso surpreende-a. Esperava que eu argumentasse. Prossegue o relato da sua existência nos três séculos. Conhecera festas e luxos intimamente; encetara viagens à volta do globo; vislumbrara coisas hoje incógnitas ou desaparecidas.
As suas palavras seduzem-me, atiçam-me o imaginário, despertando a adormecida vontade de viajar e conhecer o mundo. Tanto de mim foi abafado depois de me casar, por razões económicas como práticas como... por outras que nada têm a ver com o meu marido. Se não temos dinheiro nem vida para passar meses em viagem também é verdade que a ele o atrai a segurança quieta dos lugares que sempre conheceu. Não é homem de viagens e eu não posso peregrinar sozinha, fazer as minhas férias separadas, não porque mo proíba, não é ciumento, mas tão-só porque não temos possibilidades. E, de súbito, num jacto repentino, essa reprimida vontade de passear ressurge, atiçada nas palavras da vampira cativa. Pergunto-me porque me terei casado com ele. Somos distintos em aspectos fundamentais. Não consigo contar-lhe tudo e amordaço muito de mim para a relação não sofrer. Eu abdiquei mais do que ele, mas nunca o censuro por isso. A escolha foi e é minha. Mas porque o escolhi? Pela segurança que agora me oprime. Ele é a rocha que me impede de afundar. Providencia a sensação de solidez que me impede de lançar-me às águas escuras do abismo do meu lado negro. Não quero ser “boazinha”, mas das convidativas forças ocultas sei que não há retorno. Em ocasiões interrogo-me se me sabotei ao casar-me. Se esse abismo não será o meu destino derradeiro, apesar do que quer que eu empreenda para me afastar e levar uma vida normal.
Evangeline descreve paisagens de África em tempos coloniais; os nativos da Austrália e Nova Zelândia; os estranhos rituais da Índia. Não quero saber das horas. Não me importa. Quero ficar ali e sonhar, sonhar que sou eu a viajante incansável. Viajante verdadeira e não de livros pois somente através deles extingo um pouco a sede de partir sem rumo, sem bússola, sem propósito.
Não me incomoda o avançado da noite; se o meu marido chegou ou não a casa e encontra para jantar restos do almoço de ontem; se já é dia e me esperam no trabalho, para enviar facturas e se é o último dia para pagarmos a letra ao banco. Não quero saber. Fico. A escutá-la.
Subitamente Evangeline suspende o relato e observa-me fascinada pelo meu semblante atento, como uma criança no primeiro dia de escola.
- Continua.
- Não. Volta amanhã.
- Diz-me...
- Amanhã.
E depois disso recusa-se a falar, recolhendo para o fundo da sua prisão, cola-se à parede e eu deixo de a ver.
Ao meu marido, entrando em casa, não dou explicação nenhuma. Estou de muito mau humor. Receio dizer tudo sem conseguir parar. Ele não insiste porque me conhece a disposição.
No dia seguinte telefono para o emprego. Sim, continuo doente e não, não posso ir, estou indisponível durante uns dias.
Sinto que vale a pena perder o emprego por uma boa história – já que não a podemos viver.
- A luz do dia mata-te?
- Sim.
- Então como conseguiste viver ainda tanto tempo com D. Raimundo sem ele estranhar não saíres à luz do dia?
Esperava a pergunta.
- A minha passada fragilidade providenciou-me a desculpa necessária. Eu passava a maior parte do dia no leito e levantava-me após o sol-posto.
Evangeline alonga-se na narrativa; consegue descrever cada minúsculo detalhe, cada pormenor, põe os sabores das especiarias na minha boca e o ribombar dos sinos e rufar dos tambores nos meus ouvidos, e eu sinto-me lá, com ela, a sua sombra invisível.
Sou ingénua, admito. Basta pouco para me ganhar. Um elogio feito na hora certa. Se não fosse pela atenta vigilância dos meus pais, em criança teria seguido qualquer um, bastando que me oferecessem um sorriso terno, um doce gesto. O meu primo Dominique, mais velho dois anos, dedilhava, competente, essa corda em mim, contando-me histórias inacreditáveis. Convencia-me de tudo. Sim, à noite as máscaras de Carnaval ganham vida e mordem os pés dos dorminhocos (fê-lo várias vezes. Eu, aterrada, escondia-me debaixo dos lençóis). Na lua vivem gnomos verdes que nos roubam os presentes de Natal a não ser que os subornemos com doces e bolos. Adivinhem o intermediário destas trocas. Para não falar da altura em que fui caçar gambozinos com ele, munida de uma saca de serapilheira com o cheiro das batatas ainda fresco. Mas as suas histórias cativavam-me, prendiam-me. Vem dele o meu amor aos contos, às narrativas intrincadas e impossíveis. Fantásticas. Fora deste mundo. O meu primo Dominique, que eu adorava e adoro ainda, apesar de ter morrido num acidente de automóvel aos dezoito anos. Não morreu, não morrerá nunca, não enquanto eu oiça a sua fina voz de criança narrar-me contos singulares.
Mas se sou ingénua o facto é que Deus ou o destino ou a Natureza me dotaram de instrumentos para mitigar a candura. Quando algo não está bem, uma situação ou pessoa, sinto no estômago uma urgência, o corpo inteiro ecoa numa vibração desagradável. O espírito, ou o subconsciente, fala-me através da carne, da pele. Urge-me a que me distancie da situação, do indivíduo. A intuição jamais me falhou. Porém meto-me em problemas porque por vezes decido calá-la e escutar a voz da ingenuidade, da inocência. Quero acreditar que há mais inocentes neste mundo. Que o planeta é composto de inocentes. Que a pessoa à minha frente não representa um problema. É mentira, claro. Um auto-engano que me custa, no futuro.
Agora acode-me de novo a mesma intuição, a mesma premência do corpo, avisando-me do perigo. Sei que Evangeline me está a seduzir com a história e, se o permitir, provavelmente perderei a vida. Ela é como um mar calmo em que avanço, pouco a pouco, sem saber nadar, mas confiante, e de repente as águas agitam-se e eu estou demasiado longe da praia. A sua sedução é exemplar. Soube identificar em mim o ponto certo. Apercebo-me que foi essa a capacidade que a permitiu sobreviver durante séculos.
Levanto-me e parto sem dizer nada.
A sua cara demonstra pânico, os olhos muito abertos presos a mim, as mãos enganchadas nas barras.
- Não vás! Eu dou-te o que quiseres! Tudo, TUDO!
Já estou no túnel. Não me viro.
- A imortalidade! A IMORTALIDADE!
E então eu estaco. Uma onda de arrepio eléctrico, meio quente, meio fria, viaja dos meus pés à cabeça. O seu desespero deve ser colossal, penso. E novamente seduzida (não pela oferta, mas pela curiosidade que o seu terror me causou. Nas palavras gritadas eu senti uma verdade sua e pareceu-me, do início, que Evangeline poupava na verdade), retorno.
- Que farei eu com isso? Parra que me serve isso?
Fica uns segundos atabalhoada, sem saber responder.
- É uma dádiva... um dom se...
- Dom? Como o teu? Para acabar os meus dias como tu, sem sequer poder morrer? É esse o dom? Ou louca, como aquele que te fez assim?
- Não imaginas o que eu vivi, não podes imaginar. Cheguei ao futuro. O meu corpo é a máquina do tempo. Quero continuar a viajar no futuro. Também o podes fazer. Seremos companheiras.
- Não acredito. Tiro-te daí e a primeira coisa que fazes é matar-me. Não.
Engole em seco. Baixa os olhos. Não sabe como persuadir-me. Os olhos azuis perdem o brilho, momentaneamente esmaecem.
- Penso que é altura de começares a contar a verdade.
Ela fita-me num mudo espanto.
Sento-me, de pernas cruzadas, frente à cela.
- Diz-me a verdade. Depois julgarei se te liberto ou não.
Faço um jogo perigoso, mas o desejo de saber sobrepõe-se à precaução.
- Seja – e os lábios tornam-se duros, o olhar de mármore. Evangeline recupera a postura que denoto arrogante, além de esplêndida.
- A verdade.
- Comecemos pelo homem de pedra.
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