terça-feira, julho 19, 2005

Capítulo 10 d' A Imortalidade


O homem de pedra. Já que o foi na vida, assim permanecerá até ao final dos tempos.
Estou cansada. Nestas alturas é habitual a minha imaginação divagar. Saio do corpo, quase. O espírito solta-se e desliza, viaja para o mar onde escuto o eclodir oceânico das ondas, uma após outra, e me vejo sentada na areia, olhando a água e a espuma. Sozinha, sem ninguém ao redor. Posso ali ficar horas. Na praia, no interior da mente.
Aníbal cortou o pulso esquerdo com a faca, deixou escorrer o sangue para o copo e passou-o pelas barras. Evangeline aceitou-o fitando-o com um olhar sério e, em seguida, mordeu a mão, o monte de Vénus, fechou o punho, virou-o para o copo e os dois sangues misturaram-se.
Devolveu o copo a Aníbal que bebeu avidamente.
Ela deixou-o beber em êxtase arrebatado. Viu-o lamber o copo. Retirar com o dedo o mínimo vestígio de sangue. Observou-o, ávida, e na fisionomia o discreto sorriso da vingança animou-se, qual raiar de sol na paisagem invernosa. Aníbal sentiu-se subitamente indisposto, pensou que era de esperar, porém a náusea veloz cobriu-lhe a extensão da carne em segundos. Não compreendia. Evangeline nunca lhe descrevera isto. E num relampejar de consciência percebeu o que ela lhe fizera. Fitou-a de olhos arregalados, enclavinhando a mão enrugada no estômago. Percebeu que ela não lhe deu a vida, mas a morte. Vai morrer à mesma. Zonzo, cambaleou. “Porquê?”, exclamou, débil. Não atingiu haver pessoas que preferem a morte a cederem. Mas Evangeline não estava derrotada ainda. Quando ele se virou para o túnel ela projectou as mãos por entre a cela, agarrou o casaco e tentou prendê-lo, mas Aníbal escapou-se. Fugiu, aos arrastos, pelo chão frio do túnel.
E agora tem até ao fim deste ciclo temporal para se perguntar: porquê?, porquê? Porque o fez?
(Continua.)

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