13º e último capítulo d'A Imortalidade
Observo a mudança do dia para a noite através da alteração da luz que ilumina a sala. Pouco a pouco os meus sentidos vão despertando, saindo do embrulho de gaze que os envolve. No segundo dia após Evangeline ter partido há uma explosão súbita dos meus sentidos, que se intensifica ao raiar do terceiro dia.
A plenitude aromática assalta-me as narinas como um exército combatente. Sinto a pele formigar no embater das moléculas. Todo o meu ser arde absurdamente, por dentro e por fora, num género de fogo místico e real, um fogo que me consome se não o apagar, um lume que devo suprimir cumprindo qualquer coisa, mas o quê não me é claro. Aspiro o cheiro da última página do quinto livro a contar da esquerda, na segunda fila de cima, sito na sétima estante – sei o lugar exacto de onde emana cada imperceptível odor. Conheço a localização dos insectos pelo seu cheiro e também pelo som que as patinhas produzem percorrendo os minúsculos e obscuros buracos abaixo do solo. Eu até oiço o mastigar desdentado das minhocas, lesmas e caracóis. Ao princípio abateram-se sobre mim numa homogénea multiplicidade, indiscernível, mas em breve fui capaz de os distinguir, incluindo o de Evangeline, ainda presente no sofá. Tinha a forma que o seu corpo ocupara. Depois, olhando para trás, aspirei o percurso que ela fizera desde a cela. Eu consigo cheirar os seus passos, o ondular do cabelo e vestido, o movimento pendular dos braços.
Os sons derramam-se sobre os meus ouvidos num conjunto escaldante, enlouquecedor. O som da erva oscilante, lá fora, o das moscas, mosquitos e cigarras, o som do suave crepitar dos livros e da madeira, o som da casa a envelhecer lentamente, o som do ar que me circunda.
A visão magoa-se com a luz solar. Não a suporto. Choro se mantenho os olhos fixos para a janela clara por mais de dois segundos. Recuo para as trevas e sinto-me subitamente bem, como se no ventre materno, no ninho. Do escuro vejo os móveis, as paredes, a divisão claramente na sua crueza, percebo maiores detalhes e com melhor percepção do que se estivesse lá fora, sujeita ao sol do meio-dia, e ainda mortal.
Mortal. Já não o sou.
Apreendo-o, de improviso, e não apenas por causa da brusca explosão dos sentidos (o simples roçar arrepia-me as estranhas como se eu fosse um violino com as cordas no interior, o toque intensifica o fogo inicial, para o qual não achava explicação e não sabia como extinguir), mas devido também à aterradora resposta para a solução final do lume a consumir-me de dentro para fora com crescente intensidade.
O lume é o apetite. E só o apagarei ao saciar-me, cedendo ao trovão ribombando nos ouvidos. Bebendo sangue.
Nunca tive tanta fome na minha vida. Comeria qualquer maltrapilho leproso e pestilento que me apresentassem. Comeria um cadáver se a carne ainda permanecesse morna ao tacto. Sorveria os fluidos putrefactos de um defunto posto na terra há anos. Qualquer coisa. Eu tenho de comer. É demasiado forte. Um imperativo físico igual ao acto de respirar para os humanos.
Os ouvidos detectam movimento abaixo dos pés. Com uma força que nem sonhava possuir esmago o chão com os punhos, esgaravato entre o cimento e a terra, que pus à vista fazendo uso das unhas a caminho de se tornarem garras, mas ainda sensíveis. Arranco algumas. E, com cuidado, pego na centopeia e amasso o seu corpo, deixando as pequenas gotas escorrerem na língua. Não chega. Açula-me o fogo.
E, num flash, vejo quem me poderá matar a fome.
O meu marido.
O horror daquilo que pensei abalroa-me. Mas a fome é tamanha. Recuo para o nicho mais escuro, debaixo da biblioteca. E choro. Grito, berro. Não reconheço os urros. São sub-humanos. Tenho as pernas dobradas, encostadas à barriga, seguras nos meus braços. Olho o tempo todo para a porta. A porta tentadora. Eu consigo, eu sou capaz. De resistir a isto. Sou capaz. Vou ser capaz. Sou. Sim, que me queime o lume por dentro. Não vou abandonar a pouca humanidade que me sobra. Não cederei à terrível tentação. Ela sabia. Cabra. Sabia que eu pensaria nele. Calculou que fosse a correr para casa e o matasse como um animal. Cabra, cabra!
Não. A culpa é minha. Não imaginei que o génio mau da lâmpada se libertasse sozinho.
Tento adormecer, contudo os sentidos em alerta impedem-me. Banho. Água. Preciso de um banho quente. Preciso de investigar o resto da casa, encontrar o quarto-de-banho, mas receio passar perto da saída e ceder à fome. Fico quieta, os olhos arregalados para a saída, as unhas a rasgarem as calças e a enfiarem-se na carne.
Resisto. Consigo resistir.
Consigo resistir.
A luz já não me magoa a vista. É uma fonte de prazer que me aquece o sangue e desperta o apetite. Mantenho-me o mais longe dela. E recolho-me à praia, ao anterior caos apaziguador. Já não resulta. Eu hoje sou aquela paisagem destruída. Tento fazer sentido disso tudo, do porquê.
Chego à conclusão que Evangeline era a minha sombra, o meu negativo, e que fui ao seu encontro com o fim inconsciente de me tornar um ser completo. Era o destino. Foi ele que me colocou no seu caminho, me indicou a direcção. Tem de haver uma razão para isto. Tem. Um propósito final, transcendente. Passei a existência a evitar o lado sombrio, a recusar o abismo. Agora não tenho escolha. Tenho-o em mim. Eu sou o abismo. Pondero se devo abraçá-lo ou não, se o devo manifestar. Estou viva, mas será necessário que mate para permanecer viva? Evangeline não comeu durante seis anos e meio e reteve ainda muita força. Não acho que seja necessário beber dos outros. Rejeito a tentação, mas não o abismo pois ele já me preenche. Eu caí e não há volta. E, pela primeira vez, sinto-me, por entre a dor física e psicológica, completa. Inteira. Eu própria. Sem máscaras. Sem cedências nem submissões. Vivo a minha verdade. Que é uma verdade terrível, o que não me consola em nada. Esta verdade íntima aterroriza-me, mas é quem eu sou. Já não posso fugir da sombra. Ela apanhou-me.
Leio livros. À noite. Evito o dia. A fome não amainou, mas descobri que, juntamente com a extraordinária força física, possuo grandes reservas de força mental e sou capaz de exercer autocontrolo.
Comecei numa ponta. Acabei de ler os livros situados na primeira metade da formação em U da biblioteca. Demoro tempo a saborear as palavras, os cheiros dos tomos, a imaginar a acção. Desconheço há quanto tempo aqui estou. Não conto o tempo. Durante o dia interno-me no nicho mais obscuro que encontro, dentro da casa cujas restantes divisões investiguei, e leio o Tao Te King de Lao Tse cem vezes. Mil vezes. Até a luz solar partir. Então retorno à biblioteca. E prossigo. Sem nunca deixar de sentir as picadas depauperantes da fome. Por vezes vou ter com Aníbal e leio algumas passagens das obras. Não devia, mas tenho pena dele. Não tem sequer o escape da morte. Para mim a morte é possível ainda. Pesquiso sobre o assunto, na ciência, na ficção. Como poderá um vampiro morrer de facto? Não confio nos mitos. Um dia quando for assolapada pelo desejo da morte, desconfio que rapidamente descobrirei um método, ou melhor, que outros o descobrirão por mim, basta dar-lhes a oportunidade.
O espelho reflecte a imagem de um corpo anoréctico. Evangeline não estava assim. Pondero que em trezentos anos acumulou força e poder. Era preciso muito para a quebrar. Eu nunca bebi sangue, nunca me alimentei. Talvez esta seja a via para a morte inevitável. As picadas da fome por vezes desvanecem e a cabeça fica-me leve. Retornam menos fortes. Mas a presença da fome é suprema. Diminui de força em apenas um a dois por cento. Quantos anos levarei até que desapareça? Até me tornar um esqueleto vivo?
Escuto passos e a seguir o abrir da porta da entrada. Assusto-me como um animal acossado, um coelho perseguido por cães de caça. Escondo-me atrás da estante. Domino-me e avanço para ver dois miúdos com cerca de dezasseis anos.
- Vamos embora – diz o rapaz, alarmado.
- Não, vamos ver o resto – contrapõe a rapariga, imprudente e vítima da mesma curiosidade que eu.
Mas ele não a ouve. Agarra-a pelo pulso e leva-a daqui para fora. Nunca mais voltaram. Não consigo reprimir o pensamento de que tinham os dois um ar apetitoso. E as roupas. Eram... diferentes. Há quantos anos estou cá?
Nessa noite arrisco ir à rua. Avanço cinco tímidos passos após transpor a porta. Rapidamente volto atrás, com o terror do que poderia encontrar lá fora. Que horrores me esperam ali? Prefiro ficar. Aqui estou segura. É ainda cedo para morrer. Não acabei de ler os livros.
Li a biblioteca inteira mais do que uma vez. Há várias semanas que não consigo ignorar a fome, como dantes conseguia. Mergulho a atenção no Livro da Via e da Virtude de Lao Tse.
Lê-lo é como fazer auto-hipnose. Este livro é a minha salvação.
Então, de repente, a meio da leitura, sinto uma presença atrás de mim.
Volto-me e vejo Evangeline. Ela regressou.
Quer levar-me com ela.
Quer que eu seja a sua companheira, a sua irmã. De infortúnio. Os vampiros, na terra, duram muito pouco e ela está sozinha. Só, como eu.
Traz-me sangue dentro de uma geladeira de aspecto futurista. Não reconheço o design demasiado avançado. Está repleta. Não esperava encontrar-me viva. Veio, mesmo assim.
E eu... bebo. Esgoto o sangue em minutos. Bebo cada gota. Como se bebesse, sedenta, de uma nascente de pura água fresca. E de súbito sinto brotar em mim uma misteriosa força anteriormente adormecida.
Escrevo no presente porque é nele que vivo há décadas – um presente infernal.
Aceito a fome. Aceito que a devo saciar. Aceito-me.
Vou com Evangeline. A porta da casa cerra-se, por fim.
A quem ler isto: fecha tu também a porta pelo lado de fora. Eu posso voltar. Eu posso já estar aí no interior. A observar-te. Das trevas.
E com fome.
Muita fome.
FIM
27 de Julho de 2005
(Restantes capítulos aqui.)
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