sexta-feira, julho 22, 2005

Capítulo 11 d' A Imortalidade

Abro os olhos. Não vejo nada. Está escuro. Sou de pedra! Por Deus, sou de pedra. Oiço um riso débil, ao fundo. Depois, por cima do meu rosto aparece o de Evangeline, sorridente. Consigo distingui-la a ela, aos olhos azuis, aos dentes pontiagudos e perfeitos, mas como se envolta numa faixa de gaze. O seu cabelo roça-me a pele, mas não o sinto. Eu não sinto nada, nada!
Evangeline debruça-se sobre o meu corpo, pega com cuidado em mim e leva-me para o sofá. Estou desconjuntada, como uma velha boneca de trapos, tal qual os cadáveres que, antes de enrijarem, ficam moles, flácidos. Não sinto o seu toque na pele, não sinto a pressão dos braços na carne. Súbito apercebo-me que não discirno já o cheiro da sala, que a minha boca não tem sabor e que o silêncio me chega entrecortado, desconectado, por entre os ligeiros ruídos feitos pelos movimentos de Evangeline. É isto a morte. É este o verdadeiro inferno. A curiosidade perdeu-me. Nunca serei absolvida por este pecado.
Evangeline segura um objecto frente aos meus olhos.
A chave.
Continua exibindo o discreto sorriso de triunfo.
Ela subtraiu-ma. Surripiou-a quando me agarrou e prendeu. Por isso é que me largou de imediato. Já tinha o desejado. Compreendo que o sono e cansaço juntos fizeram com que não prestasse atenção. Se estivesse atenta notaria que fizera o mesmo a Aníbal: o agarrara, depois de beber o sangue, por motivo idêntico, tirar-lhe a chave. Revistá-lo. Mas ele escapou-se. Era essa a sua estratégia. Aproveitar o instante de indisposição e furtar-lha. Não resultou. Comigo sim. Porque sou idiota e dada a tentações. Enfim o abismo derradeiro está comigo, aqui, e habitar-me-á até ao final dos tempos. Fui tão burra que me esqueci estar ainda em posse da chave.
Guarda-a num colar que põe em redor do pescoço. Diviso-a com maior nitidez. Descaio, no sofá, ficando numa posição patética, mas ela não se ri. De ar compenetrado acomoda as almofadas à volta do meu corpo para que fique direita, fitando-a.
E começa.
A contar-me a verdade.


“Mortal idiota”, diz. “Imbecil. Julgas que após três séculos a sobreviver eu morreria ali, naquele antro? Julgas que não escaparia? Em trezentos anos escapei a situações piores do que esta. Quase fui queimada, enforcada, decapitada, mas consegui sempre esconder a condição imortal de humanos menos infortunados de inteligência do que tu. Apodreci neste cativeiro aviltante por sete longos anos. Aníbal é de pedra há seis anos e meio. E tu...
O teu destino não será menos terrível.
Vês o quadro?
O vestido. Ele mandou-o pintar, dez anos após termos sido retratados. Originalmente visto a farda de ama. Sim, eu era a ama de Aníbal. Desde os seus oito anos. Ali tinha dez anos.”



Estou desprovida de sensações. Nem o meu corpo pode expressar o terror que sofro na alma. Não sinto o coração galopar nem arrepios a percorrerem a espinha nem os pêlos da carne a alvorarem de medo. Nem sequer o som da respiração. Eu já não respiro. Eu já não respiro.
A primeira coisa que fez, quando foi transformada em vampira, foi dirigir-se à casa materna e comer a mãe, os irmãos e irmãs, tal era a força selvagem da sua fome.
Mas fora movida também pelo ódio e fundo ressentimento. Ela tinha-me mentido o tempo todo. Porque não dei eu ouvidos ao instinto? A sua família de sangue desprezava-a. Porque se amancebara. Porque, conforme as normas morais da época, era uma pobre alma perdida, merecedora de compaixão na teoria, mas recebendo na prática apenas mirares e epítetos acusadores. Evangeline não tivera escolha. Ou se amancebava ou morria à fome. Escolheu viver. Essa é a sua força: ela escolhe sempre a vida, seja qual a forma. A mãe cuspiu-lhe na cara o asco azedo do seu ódio. A mãe não amava os filhos, tinha-os, mas não os amava. E a pobreza crónica agudizava o desafecto. Dos irmãos e irmãs, de quem esperava a mínima compreensão, colheu pauladas, nomes vis, pontapés, estaladas, murros e a expulsão de casa, de onde saiu correndo, tapando os seios por lhe terem rasgado o vestido.
Voltou uma vez para reatar relações, meses após se ter mudado para a residência de D. Raimundo. Tencionava amaciar-lhes a disposição com o dinheiro do amante. Trouxe uma bolsa com moedas de prata. Recebeu tratamento idêntico e ainda lhe roubaram a bolsa sem se dignarem a um simples obrigado. Quando o dinheiro acabou dois irmãos visitaram-na exigindo mais, como reparação das ofensas insanáveis causadas por ela ao nome honesto da família. D. Raimundo entrou a meio da discussão, atraído pelo berreiro. Ao conhecer o sucedido mandou os criados expulsar os intrusos e pôs Evangeline de cama durante uma semana, depois de a ter gravemente sovado, por ter tido a audácia de se apropriar do seu dinheiro.
Evangeline era uma alma infeliz. D. Raimundo mantinha-a quase tão pobre como antes, mas ao menos possuía o conforto que jamais julgara ter ou merecer: um telhado sobre a cabeça, os seus próprios aposentos, e comida farta sobre a mesa. Não passar fome era o superior dos luxos. Mesmo as vestes baratas que lhe comprava eram mais sumptuosas do que os trapos de antigamente. Não lhe dava dinheiro, porém. Tratava as moedas de ouro e prata como filhos dilectos, acariciando-as, prodigalizando festas ao metal luzente e roçando os lábios nas bolsas cheias. Ter Evangeline subtraído uma das bolsas menos gordas das centenas que D. Raimundo possuía, foi como uma ataque à sua essência, um golpe profundo no coração. Evangeline aprendeu com a experiência e nunca mais se aproximou, nem sonhos, do dinheiro.
Odiava o velho igualmente por outras razões. O seu toque nojento, asqueroso, fedido, que tinha de suportar na pele, noite após noite, causava-lhe uma intensa náusea e crescente desprezo e animosidade. Ele servia-se dela sem considerações pelo seu pudor nem respeito pelo corpo. Usava-a como um alforge é usado para ter coisas, objectos. Engravidava-a vezes seguidas, pouco se incomodando com as recomendações dos físicos que lhe diziam ser a morte de Evangeline segura se tornasse a emprenhar. Não obstante persistia a forçar-se a ela, noites seguidas. Que lhe importavam os abortos sucessivos? Ao menos não lhe nasciam bastardos. Que lhe importava que morresse? Bastava arranjar outra jovem esfomeada que consentisse os maltratos em troca de comida. Arranjaria outra encardida, outra pequena rameira que iria educar primorosamente. Esta tinha-lhe dado certos trabalhos. Podia morrer à vontade. A próxima seria mais submissa.
Mais submissa que Evangeline, à época, seria impossível encontrar. Ela fazia os possíveis para não ser vista, não ser notada. Não abria a boca e concordava com o que quer que D. Raimundo proferisse, se acaso lhe dirigisse a palavra, o que raramente acontecia. Até os criados a menosprezavam, considerando a sua condição inferior à deles por ser barregã.
O toque e cheiros emanados de D. Raimundo: isso era o pior de tudo, mas cerrava os olhos e esperava que retirasse o seu corpo pesado e fedorento de cima de si, tentando adormecer rapidamente.
Foi, já saciada de uma maneira que nunca a comida o fizera, ao encontro de D. Raimundo. Mas descobriu que havia lugar para muito mais do que consumira. Se não da carne, pelo menos do sangue.
Encontrou-o a contar as suas amadas sacas de dinheiro. Sem se dignar a olhá-la ordenou com rispidez que se fosse, mas, compreendendo que Evangeline permanecia quieta, ergueu-se na intenção de a disciplinar com as costas da mão fechada quando, para seu indizível horror, viu que estava coberta dos cabelos aos pés de sangue molhado, seco e em vias de coagulação. Tentou gritar, debalde porque emudecera de um momento para o outro. Evangeline avançou para a mesa e ele recuou, encolhendo-se debaixo dela, espalhou o pecúlio de uma saca pela divisão num movimento de braço seco e brutal. A seguir baixou-se, puxou-o para fora do refúgio e antes de o matar torturou-o lentamente, arrancando pedaços largos de carne: parte do rosto, das coxas nutridas, da barriga das pernas, do estômago amplo e dos braços, deliciando-se no sangue que acabou por cuspir por não querer mais nenhum dos seus fluidos repulsivos a circularem-lhe no corpo.
Evangeline ficou com o tecido das vestes de D. Raimundo preso nos dentes. Retirou-o e decidiu ser aconselhável guardar o ouro, levá-lo consigo. Por esta altura a sua força já era espantosa e tinha também esquematizado o plano que lhe permitiria escapar e começar vida nova, incógnita, longe daquele pardieiro e dos que a haviam injuriado. Partiria. Iria viajar. Conhecer novas terras.
Matou os criados, um a um, e saiu, depois, em busca de uma jovem mulher burguesa da sua estatura e do seu tipo físico. Não importavam semelhanças de rosto. Ela resolveria isso.
Se eu pudesse sentir, estremeceria, mas os sentidos continuam num embotamento obstinado.
Encontrou-a facilmente.
Na noite escura e sem lua Evangeline via claramente como se fosse dia e possuísse olhos felinos.
Quebrou-lhe o pescoço e pô-la em cima do ombro como uma saca de batatas quase vazia. Em casa vestiu-a com as suas roupas, que depois rasgou em parte, e em seguida mordeu-lhe a carne ainda morna. Por fim com os dentes e as garras afiadas arrancou-lhe o rosto.
Deu um último olhar avaliador à casa onde viveu dez anos, agora mergulhada no caos e coberta de sangue pelo chão, móveis e paredes, antes de amarrar o saco à cintura contendo as moedas de ouro e prata e partir envolta numa capa castanha escura que a cobria de cima a baixo. Tomara banho e vestira as vestes da jovem burguesa.
Soube, anos mais tarde, que a manha resultara: julgaram-na morta e condenaram dois pobres desgraçados que nada tinham a ver com o massacre. Evangelina não mostrou arrependimento com a sua morte indevida.
- Ah – inclina-se para a frente, os nossos olhos estão ao mesmo nível, - a luz do dia não nos mata – confessa, risonha.
Outra mentira. Apenas outra das dezenas com que me alimentou.
Permanece a observar-me, sem se recolher para trás, expectante de algo, talvez da luz do reconhecimento no meu espírito
- Percebeste? – pergunta, enfim.
- Pisca os olhos se percebeste.
Não faço nada. De facto não entendo o que me tenta dizer.
- A luz do dia...
Detém-se.
- ... não nos mata.
E de imprevisto faz-se luz. É claro, claríssimo como água. Súbito as anteriores palavras descortinam o verdadeiro significado: o teu destino não será menos terrível.
Ela transformou-me num destes horríveis seres! Ela converteu-me num ser vampírico! Condenada à imortalidade!
Serei como ela. Deus Nosso Senhor! Como ela...

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