domingo, julho 03, 2005

Capítulo seguinte da, hum, novela que ando a escrever para participar no Super desafio: Narrativa de ficção . O prazo termina a 20 de Agosto. Sim, deste ano. E sim, ainda têm tempo.

Deste vez coloco no blog o capítulo inteiro. (Restantes capítulos aqui.)



Capítulo 7


- A Imortalidade dá a volta à cabeça a qualquer um. Os humanos não foram desenhados para ela. Mas se o preço é alto é certo que vale a pena. Todos os prazeres que se obtêm, os próprios sentidos se afinam, e diante de nós estendem-se as Eras para experimentar o mundo e seus deleites. O mundo é dos imortais – conta.
- Não me parece que tenhas ficado muito contente de início.
- Isso mudou.
Evangeline está sentada no chão, as costas apoiadas à parede. Não me atrevo a aproximar-me. Sei que me agarrará e, para me causar o desmaio, usará o cheiro maldito. Percebo finalmente. É assim que faz as vítimas aquietarem-se. Não estou longe do túnel. Pronta para a fuga ágil.
- Em 1729 assisti ao matrimónio do príncipe D. José com D. Mariana de Bourbon. O fausto, a majestade do evento. Foi muito bonito. Sumptuoso. Continuava bela e jovem. A cada dia a minha beleza engrandecia. Convidavam-me para tudo. Tive amantes. E como não podia ter filhos diverti-me.
- Informaste D. Raimundo do facto?
Por um segundo olha-me de soslaio com má cara, mas desvia a vista e responde:
- Não quis preocupá-lo ainda mais. Não lhe podia dizer o que eu era. Um... outro ser. Nesses tempos uma palavra, por mais casta, dita no sítio desacertado, atraía os grifos da Inquisição. Se lho confidenciasse estava não só a colocar a minha vida em risco, mas também a dele. E a da minha pobre família.
Não contesto. Isso surpreende-a. Esperava que eu argumentasse. Prossegue o relato da sua existência nos três séculos. Conhecera festas e luxos intimamente; encetara viagens à volta do globo; vislumbrara coisas hoje incógnitas ou desaparecidas.
As suas palavras seduzem-me, atiçam-me o imaginário, despertando a adormecida vontade de viajar e conhecer o mundo. Tanto de mim foi abafado depois de me casar, por razões económicas como práticas como... por outras que nada têm a ver com o meu marido. Se não temos dinheiro nem vida para passar meses em viagem também é verdade que a ele o atrai a segurança quieta dos lugares que sempre conheceu. Não é homem de viagens e eu não posso peregrinar sozinha, fazer as minhas férias separadas, não porque mo proíba, não é ciumento, mas tão-só porque não temos possibilidades. E, de súbito, num jacto repentino, essa reprimida vontade de passear ressurge, atiçada nas palavras da vampira cativa. Pergunto-me porque me terei casado com ele. Somos distintos em aspectos fundamentais. Não consigo contar-lhe tudo e amordaço muito de mim para a relação não sofrer. Eu abdiquei mais do que ele, mas nunca o censuro por isso. A escolha foi e é minha. Mas porque o escolhi? Pela segurança que agora me oprime. Ele é a rocha que me impede de afundar. Providencia a sensação de solidez que me impede de lançar-me às águas escuras do abismo do meu lado negro. Não quero ser “boazinha”, mas das convidativas forças ocultas sei que não há retorno. Em ocasiões interrogo-me se me sabotei ao casar-me. Se esse abismo não será o meu destino derradeiro, apesar do que quer que eu empreenda para me afastar e levar uma vida normal.
Evangeline descreve paisagens de África em tempos coloniais; os nativos da Austrália e Nova Zelândia; os estranhos rituais da Índia. Não quero saber das horas. Não me importa. Quero ficar ali e sonhar, sonhar que sou eu a viajante incansável. Viajante verdadeira e não de livros pois somente através deles extingo um pouco a sede de partir sem rumo, sem bússola, sem propósito.
Não me incomoda o avançado da noite; se o meu marido chegou ou não a casa e encontra para jantar restos do almoço de ontem; se já é dia e me esperam no trabalho, para enviar facturas e se é o último dia para pagarmos a letra ao banco. Não quero saber. Fico. A escutá-la.
Subitamente Evangeline suspende o relato e observa-me fascinada pelo meu semblante atento, como uma criança no primeiro dia de escola.
- Continua.
- Não. Volta amanhã.
- Diz-me...
- Amanhã.
E depois disso recusa-se a falar, recolhendo para o fundo da sua prisão, cola-se à parede e eu deixo de a ver.
Ao meu marido, entrando em casa, não dou explicação nenhuma. Estou de muito mau humor. Receio dizer tudo sem conseguir parar. Ele não insiste porque me conhece a disposição.
No dia seguinte telefono para o emprego. Sim, continuo doente e não, não posso ir, estou indisponível durante uns dias.
Sinto que vale a pena perder o emprego por uma boa história – já que não a podemos viver.



- A luz do dia mata-te?
- Sim.
- Então como conseguiste viver ainda tanto tempo com D. Raimundo sem ele estranhar não saíres à luz do dia?
Esperava a pergunta.
- A minha passada fragilidade providenciou-me a desculpa necessária. Eu passava a maior parte do dia no leito e levantava-me após o sol-posto.
Evangeline alonga-se na narrativa; consegue descrever cada minúsculo detalhe, cada pormenor, põe os sabores das especiarias na minha boca e o ribombar dos sinos e rufar dos tambores nos meus ouvidos, e eu sinto-me lá, com ela, a sua sombra invisível.
Sou ingénua, admito. Basta pouco para me ganhar. Um elogio feito na hora certa. Se não fosse pela atenta vigilância dos meus pais, em criança teria seguido qualquer um, bastando que me oferecessem um sorriso terno, um doce gesto. O meu primo Dominique, mais velho dois anos, dedilhava, competente, essa corda em mim, contando-me histórias inacreditáveis. Convencia-me de tudo. Sim, à noite as máscaras de Carnaval ganham vida e mordem os pés dos dorminhocos (fê-lo várias vezes. Eu, aterrada, escondia-me debaixo dos lençóis). Na lua vivem gnomos verdes que nos roubam os presentes de Natal a não ser que os subornemos com doces e bolos. Adivinhem o intermediário destas trocas. Para não falar da altura em que fui caçar gambozinos com ele, munida de uma saca de serapilheira com o cheiro das batatas ainda fresco. Mas as suas histórias cativavam-me, prendiam-me. Vem dele o meu amor aos contos, às narrativas intrincadas e impossíveis. Fantásticas. Fora deste mundo. O meu primo Dominique, que eu adorava e adoro ainda, apesar de ter morrido num acidente de automóvel aos dezoito anos. Não morreu, não morrerá nunca, não enquanto eu oiça a sua fina voz de criança narrar-me contos singulares.
Mas se sou ingénua o facto é que Deus ou o destino ou a Natureza me dotaram de instrumentos para mitigar a candura. Quando algo não está bem, uma situação ou pessoa, sinto no estômago uma urgência, o corpo inteiro ecoa numa vibração desagradável. O espírito, ou o subconsciente, fala-me através da carne, da pele. Urge-me a que me distancie da situação, do indivíduo. A intuição jamais me falhou. Porém meto-me em problemas porque por vezes decido calá-la e escutar a voz da ingenuidade, da inocência. Quero acreditar que há mais inocentes neste mundo. Que o planeta é composto de inocentes. Que a pessoa à minha frente não representa um problema. É mentira, claro. Um auto-engano que me custa, no futuro.
Agora acode-me de novo a mesma intuição, a mesma premência do corpo, avisando-me do perigo. Sei que Evangeline me está a seduzir com a história e, se o permitir, provavelmente perderei a vida. Ela é como um mar calmo em que avanço, pouco a pouco, sem saber nadar, mas confiante, e de repente as águas agitam-se e eu estou demasiado longe da praia. A sua sedução é exemplar. Soube identificar em mim o ponto certo. Apercebo-me que foi essa a capacidade que a permitiu sobreviver durante séculos.
Levanto-me e parto sem dizer nada.
A sua cara demonstra pânico, os olhos muito abertos presos a mim, as mãos enganchadas nas barras.
- Não vás! Eu dou-te o que quiseres! Tudo, TUDO!
Já estou no túnel. Não me viro.
- A imortalidade! A IMORTALIDADE!
E então eu estaco. Uma onda de arrepio eléctrico, meio quente, meio fria, viaja dos meus pés à cabeça. O seu desespero deve ser colossal, penso. E novamente seduzida (não pela oferta, mas pela curiosidade que o seu terror me causou. Nas palavras gritadas eu senti uma verdade sua e pareceu-me, do início, que Evangeline poupava na verdade), retorno.
- Que farei eu com isso? Parra que me serve isso?
Fica uns segundos atabalhoada, sem saber responder.
- É uma dádiva... um dom se...
- Dom? Como o teu? Para acabar os meus dias como tu, sem sequer poder morrer? É esse o dom? Ou louca, como aquele que te fez assim?
- Não imaginas o que eu vivi, não podes imaginar. Cheguei ao futuro. O meu corpo é a máquina do tempo. Quero continuar a viajar no futuro. Também o podes fazer. Seremos companheiras.
- Não acredito. Tiro-te daí e a primeira coisa que fazes é matar-me. Não.
Engole em seco. Baixa os olhos. Não sabe como persuadir-me. Os olhos azuis perdem o brilho, momentaneamente esmaecem.
- Penso que é altura de começares a contar a verdade.
Ela fita-me num mudo espanto.
Sento-me, de pernas cruzadas, frente à cela.
- Diz-me a verdade. Depois julgarei se te liberto ou não.
Faço um jogo perigoso, mas o desejo de saber sobrepõe-se à precaução.
- Seja – e os lábios tornam-se duros, o olhar de mármore. Evangeline recupera a postura que denoto arrogante, além de esplêndida.
- A verdade.
- Comecemos pelo homem de pedra.

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