[O outro conto que faltava.]
As duas Partes encontraram-se num espaço neutro, nem céu nem Terra nem Reino lá de Baixo, mas num espaço que Deus ainda não tinha enchido com a sua criação, não sabia o que fazer com ele, estava à espera da contribuição das almas humanas que a Ele regressassem, talvez tivessem ideias melhores. O espaço era vazio. Deus criou uma sala, grande, e dividiu-a ao meio; de um lado Ele, do outro a Outra Parte e sua entourage. Ao meio, entre as duas, estava uma mesa redonda, em cima dela estavam talheres, guardanapos, copos e um tabuleiro de xadrez ao centro. As peças dormitavam, algumas ressonavam.
As peças do lado do Bem (sejamos claros, pois é do Bem que se trata) dormitavam placidamente enquanto que as do Outro Lado às vezes abriam um olhito e mandavam pedritas contra as peças do Bem, que oscilavam, mas não se manifestavam. Continuavam na sua placidez de sono adormecida.
Deus estava sentado do seu lado e esperava. A Sua paciência era infinita. A outra Parte estava atrasada, como sempre. Fora Ele que pediu o encontro, tentar arrumar as coisas antes que chegassem a um ponto de não retorno, ao caos total, e Ele amava demasiado a Sua criação para permitir isso.
Os anjos e querubins do seu lado esperavam também, atentos. Serviriam os bolos e doces conventuais em que a Outra Parte tinha parte do mérito na criação. E, aliás, ele pelava-se por doçaria conventual. Às vezes adiava as patifarias só para poder degustar toucinho-do-céu ou maminhas de freira (ó, o que ele adorava maminhas de freira! Deus também, verdade seja dita). Os querubins, menos habituados à paciência, torciam-se, mexiam-se, implicavam com o querubim do lado, puxavam-lhe os caracóis, riam-se e suspiravam de enfado. Os anjos mais velhos jogavam às cartas sentados no chão e os arcanjos olhavam para as suas trombetas e tinham saudades dos cd´s de jazz que tinham em casa, no reino dos céus.
Até que, enfim, um ponto muito ao fundo se foi tornando maior. A Outra Parte apresentava-se ao encontro.
Vestia-se como um príncipe renascentista, com capa e luvas e trajes ricamente decorados a pérolas, ouros e jóias. A barba estava soberbamente cortada e caminhava com calma arrogância e o desprezo de quem se sabe superior a todos os presentes.
A outra parte andou lentamente até à mesa, retirando com cuidado a luva que deixava à mostra mãos longas, brancas e de unhas tratadas e, com desprezo, sentou-se no seu lado depois de um diabinho obsequioso ter puxado a cadeira. O Mestre pôs uma perna em cima da mesa, derrubando copos e deitando um prato ao chão, estilhaçando-se com estrondo. Colocou a luva vermelha na mesa com imenso desdém. A sua entourage, ao contrário do que se esperaria, não era muito larga, alguns diabos e diabinhos em treino, tão apáticos e patéticos como sempre, quão diferente as criações de uma e de outra parte! Uma nascida do amor, da pura arte pelo amor da arte, a outra nascida de intenções egoístas, narcisistas, egocêntricas, onde não cabiam o livre-arbítrio, por isso eram cópias más da verdadeira criação.
O Gajo Mau, o Diabo, o Príncipe Veneziano, enfim, chamemos-lhe o Príncipe, fazia barulhos com os dentes, chupando-os e olhando fixamente Deus. Deus abriu os olhos e sorriu. Sorria sempre ao ver uma das suas criações, era quase um tique nervoso.
¨Como estás, velho?¨, disse o Príncipe, mas na verdade estava-se nas tintas. Ele só ali tinha ido por uma razão, já sabia que não ia haver acordo nenhum uma vez que fora quebrado, o que o aliciara foram os doces conventuais. Divinais, sobretudo se feitos por mãos puras e divinas. As freiras que ele desencaminhou só porque eram boas cozinheiras! A arte culinária nas mãos de quem ama não tem comparação. Os diabos eram uns azelhas a cozinhar e quem ele desencaminhava pouco depois perdia o mágico toque, o que o forçava a procurar novos pasteleiros.
¨Vai-se indo, vai-se indo. Assim assim, sabes como é, a idade não perdoa¨, disse Deus. Deus, envelhecer? Será lá isso possível? Convenhamos. Adiante.
O Príncipe disse ¨Hum¨ com um desprezo tão grande nesse murmúrio gutural que Deus não pôde deixar de rir para dentro. A seguir mandou que os anjos servissem as iguarias.
Os anjos tinham mourejado nas cozinhas do céu dias seguidos, aconselhados por pasteleiros de renome, mortos ou não. Apareceram em redopio resmas de bolos e doces. Ele eram pudins, bolos de dois e três andares, bolinhos, bolões, bolachinhas com molhos por cima, morango, mel, chocolate, todo o tipo de doces de comer e chorar por mais. E o Príncipe comeu, olá se comeu.
Arrancou pedaços dos bolos às mãos-cheias, sem se preocupar em usar talheres nem pratos nem sequer em esperar para ser servido, punha largos pedaços dentro da bocarra, que se alargava e alargava à medida que ele comia mais e mais. De um único golpe abriu a boca que se estendeu para trás, a cara recuou, o queixo desceu, e engoliu um bolo de dois níveis, limpando os dentes depois e dando um enorme arroto que abalou a sala. Não partilhou nada com os diabos. Os diabinhos tentavam pegar as migalhas, mas o Príncipe enxotava-os com as botarras e ao murro. Deus, ao contrário, comia delicadamente uma fatia de pudim de laranja, cortando pedaços mínimos e degustando cada um com imenso prazer, enquanto os anjos, querubins e arcanjos se deleitavam também nos doces. Deus partilhava e esse era também outro prazer. Um duplo prazer divino.
O Gajo Mau olhava, sôfrego, de olhos arregalados, para o lado do Bem, para a quantidade ainda de doces que sobrava. Mas não se atreveu a passar a linha divisória porque tinha medo de ser contaminado pelo Bem e regredir ao seu estado anterior de Pura Luz, que odiava e enjeitara muito tempo atrás para ser anjo rebelde no comando de outros anjos rebeldes. E, aliás, Deus não o permitiria, só que ele não tinha medo de Deus - tinha medo de deixar de ser o que era. Até o Príncipe Malvado tem receios.
De súbito disse ¨Não há acordo nenhum¨. Deus espantou-se e perguntou porquê. ¨O acordo entre nós foi quebrado por Ti.” “Por mim não”, disse Deus. ¨Não me venhas com merdas, velhote, conheço-te de gingeira. Foi um da tua parte, um dos teus membros: a Morte.¨ ¨A Morte é neutra¨, disse Deus. ¨Neutra o caralho. É tua, pertence-Te. Segundo a Carta do Acordo há leis rigorosíssimas que definem o comportamento da Morte e ela quebrou-as. O acordo fica sem efeito.¨ ¨Não¨, disse Deus consternado, ¨vamos remodelá-lo, estou preparado para fazer concessões¨, afirmou candidamente. Estava preparado para dar mais uma parte do Seu Reino para que o Acordo permanecesse Válido, só que o Príncipe além de guloso era ganancioso: queria tudo, o Reino inteiro para reinar em toda a parte como o Imperador do Mal. Talvez um resquício do Bem permanecesse para que os bolos que adorava continuassem a ser confeccionados. Melhor pensando, não, nenhuma mínima parte devia permanecer. O Bem devia ser ostracizado da realidade, do espaço. Matar Deus e pô-lo a ferros. Enclausurá-Lo. E torturá-lo lentamente, ai que gozo! Era a oportunidade perfeita para finalmente quebrar laços com a Carta do Acordo, o comportamento incompetente da Morte dera a desculpa perfeita. Cabra de merda. Cabrão, que a Morte era gajo.
O Príncipe desencaminhava humanos, tornando-os cegos em vida para as maravilhas (puhá!) da criação divina, não conseguiam ver magia em sítio algum, trabalhavam como autómatos a puta da vida inteira, trabalhar trabalhar, ir para casa, dormir, consumir consumir, sem tempo para nada, sem tempo para amar (puhá!) os filhos, a mulher, os parentes, os amigos, os colegas. Amar era passar tempo com eles, ouvi-los, partilhar, estar feliz na sua companhia, mas o Príncipe conseguira extirpar cada vez mais o tempo para isso. Inundara-lhes as mentes pequeninas de sonhos e ilusões, toldara-lhes a visão do que era real e imaginário, dera-lhes fantasias megalómanas, toldando-lhes a visão de si mesmos, o conhecimento interior, e muitos não sabiam que a verdadeira felicidade advinha de uma vida simples, com uma família e um trabalho que, apesar de pagar razoavelmente, os enchia de prazer.
Em vez disso convenceu-os que tinham o Direito a ser felizes e depois que só podiam alcançar a felicidade com coisas. Muitas coisas. Enchiam a casa de tralha inútil, saciando os sentidos, mas nunca a puta daquela chamazinha interior que Deus lhe dera à nascença.
Essa chama: havia que a erradicar de vez, matá-la. Infelizmente era imortal, mas podia abafá-la, cobri-la de lama, dejectos e porcaria, podia cobri-la de tal modo que ela mal respiraria. Ficaria comatosa. Gloriosamente comatosa! Oh, hossanas!, pensava ele com heresia e fazendo pouco do ritual religioso. Felicidade, felicidade.
Era assim que os perdia. E eram seus! Seus por direito! Agora o merdas faz-me esta desfeita, não se faz, não se faz, diz-se , fingindo consternação, como se lhe tivessem tirado o brinquedo favorito, na verdade acabavam de lho dar. Ó, a imensa alegria (puhá), o gozo, o deleite de brincar aos maus, polícias e ladrões, caubóis e índios, Benficas e Sportingues. Cabrão do velho. Estava-me a correr o negócio tão bem, a subida era exponencial, cada vez arrebatava mais almas, tirava-lhes metade do espírito e os homens seguiam pela vida, perdidos sem o saberem, a mourejar que nem escravos para pagar coisas que não precisavam, e depois na morte os diabos iam buscar esses espíritos apáticos, pálidos, sem memória, sem metade da Alma, a Morte não lhes podia tocar, eram MeusMeusMeus. Meus, puta. Meus, só meus. Isto tudo é meu, isto tudo é meu, meu e meu, só meu. A incompetente de merda começou a conduzir os meus espíritos à metade perdida da alma e, com ela, subitamente os espíritos vêem tudo, sabem para onde devem ir, sabem que têm de seguir o caminho do Bem (puhá) e os meus diabos de serviço não os podem já pegar pela mão, conduzi-los ao meu reino e distraí-los com os seus vícios secretos até ao fim da eternidade. Uma vez lá dentro não saem. Saiu um, sacana, nem sei como, mas há mãozinha de Deus nisso, olá se há, não me chame eu Godofredo Henriques (não se chama. É só um esclarecimento aos amados leitores). Uma vez no interior não saem, são meus para sempre. Só porque o negócio me estava a correr bem a Morte começou a roubar-me a clientela. Cabra. Cabrão. Cabra. Ainda te hei-de foder o miolo, haha, não sei como, espera para ver (pensa o Gajo Mau Que Nem As Cobras, palitando os dentes). Agora o Acordo está off e a culpa nem é dele, incrível!, mas da Parte do Bem (puháá) pois apesar de neutra (neutra, era era), a Morte pertence indubitavelmente ao lado bom. Agora finalmente a chance perfeita caíra-lhe no colo. Podia desfazer Deus e a Sua entourage. Apropiar-se de tudo.
¨Não há acordo. Prepara-te para a guerra¨, disse voltando costas e saindo por onde entrara, com a multidão apática de diabos amorfos a segui-lo.
Deus suspirou. Já sabia o que viria daquele encontro, afinal era Deus, . Ele não era surpreendido a não ser pelos homens. E gostava de ser surpreendido. A Outra Parte não o surpreendia. O caminho fácil da Outra Parte era sempre o mesmo. Para que a Outra Parte o surpreendesse o amor teria de entrar na equação, o que jamais ia acontecer. Aliás, era bom que não acontecesse porque sem a Outra Parte deixaria de haver livre-arbítrio no mundo. O caminho fácil passaria a ser o Bem e isso era mau.
Os anjos arrumaram a sala, limparam os cacos, guardaram os bolos e os doces (os que não eram apanhados pelos querubins gulosos), varreram o chão e guardaram o tabuleiro de xadrez que não chegou a ser usado. No fim Deus fechou a porta. A batalha ia começar.
Sem comentários:
Enviar um comentário