domingo, maio 07, 2006

Os Mistérios da Miss Wrinkle

 [Conto]

 

 

A Miss Wrinkle é uma mulher gorda (de cu enorme) que se faz transportar em cadeira de rodas. Sorridente, contente da vida. Mas contente, o estupor!

É velhinha, para mais de setenta anos! E é detective (ou detectiva) privada.

Tipo a Miss Marple, mas em gordo.

A Miss Wrinkle tem um gato siamês, esguio, que exibe um ar compenetrado de eterno aristocrata aborrecido, excomungado da Corte das Luzes e relegado à condição de animal de estimação das classes desfavorecidas.

Na sua mente felina o que ele faz era um favor, em troca do qual recebe alimento que nem é lá grande coisa!

Ora a Miss Wrinkle, apesar de obesa (ou do calor), veste sempre saia-casaco de fazenda, um par de meias de lã escuras e sapatos atados, além de um chapéu florido (de fazenda) que não combina com o resto. Anda de sombrinha, raramente a abre. É mais um apoio quando se levanta da cadeira de rodas e é obrigada a caminhar por não haver rampas para deficientes. A Miss Wrinkle é portuguesa, não liguem ao nome, que é mais uma alcunha. Wrinkle – de rugas, mas não tem assim tantas.

Chapéu florido, sombrinha em cima do colo (envergonha-se de usar bengala, não é assim tão velha), gato siamês ao lado de rabo erguido – eis os comuns acessórios que a acompanham (e não digam que chamei acessório ao gato. Assanha-se).

O gato vai para se distrair. Estar o dia inteiro esparramado em cima da secretária do escritório chateia. Só se detectiva na rua. O gato é um abelhudo do caraças. Quase tanto como a Miss Wrinkle. Têm feitios similares e entendem-se. (Às vezes desentendem-se por esse motivo.)

Ora a Miss Wrinkle foi hoje chamada a investigar a morte súbita de um deputado para-lamentar. É caso sério e antes de chamar a bófia decidem ligar à Wrinkle, a do cu gordo, porque é discreta, não leva caro, faz quase o trabalho todo – mas é macaca. Macaca.

- Leva pouco, mas lixa-nos, atenção.

- Lixa-nos? – pergunta o deputado-mor do estaminé.

- Se descobre o culpado é capaz de não o entregar à polícia.

- Não percebo.

- É capaz de não o entregar logo à polícia... obriga o desgraçado a fazer outra coisa primeiro.

- O quê?

- Olha. Há histórias, por aí, a circular.

- Mas entrega-o sempre?

- Sim. Bom, quase sempre.

- É o que importa. Chama-a.

O esparramado cadáver jazia de costas, os braços abertos num ângulo agudo, as pernas afastadas como as hastes de uma tesoura.

- Hum – disse a Miss Wrinkle. O gato sentou-se na cadeira de estofo vermelha, claramente o tipo de cadeira vedada à ralé. Um homem tentou enxotá-lo. Levou uma unhada.

Atrevido.

Wrinkle entrevista as últimas pessoas que falaram com o agora cadavérico – in rigor mortis – deputado.

O primeiro da lista é um outro deputado – amigo do deputado – que por ali cirandava, as mãos atrás das costas, bigode aborrecido (o gato já viu muitos bigodes aborrecidos antes, na sua anterior vida nas palacianas cortes, eram standard, aliás, bigodes entediados) e olhos fixos para cima, no tecto.

Este deputado vivo – amigo do anteriormente mencionado deputado morto ou esticadinho da silva, ainda não a comer erva pela raiz porque, enfim, há diligências, isto há diligências primeiro! – passava o peso do corpo de um ao outro pé.

“’Tadinho”, pensou Miss Wrinkle, mulher de compaixões fáceis, “não tomou o Prozac. Dá aflição.”

- Quando o viu pela última vez?

- Ho... hoje.

- A que horas?

- Às... hum... dez?

- O senhor não usa relógio, como sabe que eram dez?

Ele parou. Mulher astuta. Viu logo que não usava relógio apesar de ter as mãos atrás das costas.

Peraí...

(Não reparou que atrás de si havia um espelho.)

- A gente vê-se, via-se, sempre às dez. Para trocar impressões sobre assuntos para-lamentares. Aqui – olhou a alcatifa.

- Aí?

- Neste local exacto.

Empurraram-na até ao gabinete do deputado morto – antes vivo, hum, basicamente vivo. O outro deputado – amigo do deputado, aquele, o mudo que nem uma pedra tumular – lá ficou a alternar o peso do corpo de um para o outro pé. Sapatinhos giros, a propósito. O bigode, espicaçado pelo interrogatório, tornou ao estado tedioso, como um balão que perdeu ar. Isto bigodes de deputados da Assembleia têm vidas chatas. Nem bungee-jumping, vejam lá, lhes é permitido (a lei das incompatibilidades e tal e tal).

A secretária boazona (fica estabelecido que aqui só há secretárias boazonas, para favorecer leituras masculinas. Secretárias façanhudas foram corridas do casting. Nada temeis, machos viris. É boa. Podre de boa.) levantou-se e cumprimentou a senhora idosa com um aperto de mão e um sorriso caloroso.

(Tem umas grandes mamas, a propósito.)

(Boa.)

- Quando foi a última vez que viu o seu amante?

Ela corou. Titubeou:

- A-amante?

- Ó menina, eu já vivi muito! São muitos anos no lombo – disse, rindo devagarinho e baixando os olhos.

Assim uma risota meiga. De velhinha. Do género de velhinhas, enroupadas no xaile, que nos saúdam com chá e bolachas. Crocantes. De chocolate. Uma bela chávena de chá com três cubos de açúcar!

Esse género de senhora idosa. (‘Tão a ver?)

- Aqui, no gabinete. Deu-me um beijo na cara. Disse que ia ao multibanco e já voltava.

- A que horas?

- Onze! Sim. Onze em ponto. Era homem de hábitos. Às onze em ponto ia ao multibanco.

- E às dez falava com o deputado... – murmurou Wrinkle, pensativa. O gato entrou sorrateiro, fashionably late, como qualquer gato que se preze, e saltou para a mesa.

Lambeu-se de modo obsceno.

Miss Wrinkle, perdida em conjecturas, nem notou. A boazona fez-lhe uma festa no pescoço. Como era boazona (podre de boa) permitiu.

- E foi descoberto às doze... – sibilou Miss Wrinkle com o olhar no infinito.

- Empurre-me lá para fora se não se importa – pediu num tom decidido.

 

 

À volta do cadáver (morto, relembro) reúnem-se Miss Wrinkle, sombrinha, a assistente, o deputado (amigo do deputado) e o deputado-mor.

- A explicação é simples – iniciou.

- Matou-se? – adiantou a secretária de olhos abertos.

- Não. Morreu fulminado de tédio! Finou-se vítima de aborrecimento agudo! Paz à sua alma – Miss Wrinkle benzeu-se. os outros imitam-na atabalhoadamente.

- É a vítima zero de uma possível pandemia.

- Meu Deus! – assustou-se a gaja boa. – Que medidas devemos tomar para evitá-lo?

Miss Wrinkle exibiu o sorriso de velhota simpática. Sossegou-a:

- Tenha lá calma, não entre em pânico. O meu conselho aos senhores deputados é simples: façam coisas! Parem de olhar para o tecto! Senão acontece-vos o mesmo. Trabalhem, trabalhem. Ora empurrem-me lá a traquitana à porta, se fazem favor. E muito bom-dia. Coragem, hã, coragem!

Em casa, sozinha, arrumou as moedas no mealheiro, o gato andava nas explorações do costume, a meter o bedelho em tudo, sacana do bicho, Miss Wrinkle fez um charro. Tem uma plantação de canábis em casa, na estufa. Sessenta e sete pés.

Ah... maravilha...

Mais outro caso resolvido.

O descanso dura pouco. O gravador de chamadas tem novo crime para ser investigado.

O caso do Pénis na Basílica!

Amanhã. Hoje estava cansada. Deixou a janela entreaberta para o gato entrar e foi dormir.

 

 

(7 de Maio’06)                 

 
 

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