(Em relação a este tema não respondo a perguntas ou comentários.)
Fico abismada em relação à falta de empatia social que parece banhar muitas das almas portuguesas. Definitivamente, o ascendente de Portugal deve ser mesmo caranguejo. Os meus concidadãos importam-se unicamente com os seus próprios problemas, com a sua vida, com a sua família - e os outros mais os seus problemas que se danem.
Não concebo, não aceito que me tratem com desrespeito por ser mulher. Não admito diferenciações na lei entre machos e fêmeas, pondo as últimas na cadeia se abortarem por escolha própria. Como é que alguém pode admitir isto? Mesmo que na prática raramente as mulheres sejam condenadas, mesmo que na prática recebam "apenas" uma multa. Mas foi aberto um Processo-crime. A Justiça foi envolvida. Foi sentada no banco dos réus. Imagino o percurso das desgraçadas, julgadas publicamente, à vista de todos.
Ok, deixando de lado o Abuso Psicológico e Emocional das mulheres (só mulheres, sublinho) submetidas a este desrespeito pela lei portuguesa; o facto é que, na lei (NA LEI) existe descriminação activa da mulher na sociedade portuguesa. Só isto para mim é suficiente para me encher de fúria. Eu não admito que a Lei me descrimine. Não consigo aceitar esta descriminação. Não a aceito para mim nem para as outras mulheres - mesmo que as parvas a aceitem para si.
E não me venham com merdas, que a lei é para ser cumprida quer concordemos com ela ou não. O corpo de leis de uma nação é mutável. Muitas consideradas correctas em séculos anteriores não o são hoje em dia. São até consideradas injustas.
Eu não quero ir para a prisão. Não admito que Estado nenhum me encarcere, me puna, caso algum dia recorra ao aborto clandestino. Mesmo que essa seja uma possibilidade remota. Remota ou não - ela Existe.
E, como sinto isto com grande fervor no íntimo, alargo esta ideia às restantes mulheres do meu país. Eu não aceito que nenhuma delas seja encarcerada por terem feito um aborto (aka desmancho, interrupção voluntária da gravidez). Fico com a mesma raiva que ficaria se o caso se passasse comigo; partilho, sem ter conhecido, a dor das desgraçadas (Pobres, meus lindos, ainda por cima Pobres) a quem abrem um processo-crime e que são chamadas de rés e têm de comparecer como criminosas frente a um juiz. Não consigo ver justiça nisto - apenas crueldade social e descriminação baseada no género.
Não percebo como é que muitos compatriotas meus, demasiados, não têm a mesma empatia por elas, não conseguem sequer imaginar a sua dor, a dor de serem publicamente vilipendiadas.
Por serem mulheres.
Por terem úteros.
Mulheres que abortaram.
A vida é sagrada, blá, blá, blá. A vida, parece-me, para muitos defensores do não, tem para eles mais uma qualidade romântica e ideal do que prática e material.
A vida não é um filme. Há famílias que passam fome. Há famílias que não têm dinheiro para terem filhos. É um facto, é real. No abstracto é bonito, a vida é intocável, ó que lindo bebé rechonchudo; na prática as coisas passam-se de outro modo. E não me venham com a ideia da adopção como solução milagrosa. Novamente estaríamos no domínio do idealismo, do romantismo, sem real conexão com a vida prática, com a vida tal como ela é - sem utopias, sem devaneios românticos, quando por exemplo os métodos contraceptivos falham.
Vocês imaginam uma mãe que aceitasse estar nove meses grávida e depois desse esse filho por não ter dinheiro para criá-lo?
Imaginem isto implantado à larga escala.
As vossas mães a carregarem os vossos irmãos no ventre e depois vocês nunca mais os verem; as vossas mulheres a fazerem o mesmo; as vossas irmãs, as vossas cunhadas. Milhares e milhares de bebés dados todos os anos para adopção. E toda a gente sabe que a vida no orfanato é maravilhosa, não sabe? Com sorte até podia calhar na Casa Pia!
Mães deste Portugal a carregarem filhos que nunca mais iam ver. Ó pá, ninguém suporta uma dor dessas. Nem pai nem mãe nem irmão.
Uma mãe tem um descuido, acontece.
Dois filhos dados!!!
E isto sou eu a ser "romântica", ok? Fazendo de conta que, passando o não, é assim que as coisas passam a ser. Está-se mesmo a ver que vai ser, não é?
Os argumentos da malta do não são lindos: dar o dinheiro para maior apoio às mães. Pois, isso vai mesmo suceder. Ver se arranjo um banquinho para esperar sentada. Ai as varicoses. Claro que é mentira. Onde é que a malta do não vive, no país da carochinha? Eu vivo em Portugal e conheço o meu país de ginjeira. Somos hipócritas e dissimulados e relaxados. Laisser faire, laisser passer - aplica-se que nem uma luva à nossa pátria. Pátria sim porque só um patriarcado trata tão mal as suas mulheres.
Se o não ganhar o dinheiro não vai aparecer de um dia para o outro (nem nunca). Portugal é o país da Suprema Ambivalência. Vai ficar tudo em águas de bacalhau.
O que eu gostava era que a cada defensor - e votante - do não fosse atribuída uma senhora ou adolescente de esperanças.
- Aqui a tem. Parabéns, ganhou a lotaria das grávidas! Agora ajude esta mulher a cuidar e a criar o filho que tem na barriga.
Isto sim era colocar em prática os seus ideais. Dar o corpo ao manifesto.
Ai não querem?
ELAS QUE CONTINUEM CALADAS E INVISÍVEIS A MORRER, NÃO É?
Eu sinto isto com tanta força, com uma força incompreensível e desconhecida, e não sei porquê. Sinto esta injustiça nos ossos como se me tivesse sido cometida - e não foi. Pelo menos nesta vida.
Não tenho muitas certezas, aliás, adoro o reino das dúvidas, também me atrai o reino das ambivalências, mas as poucas certezas que tenho sinto-as com a força de um fogo vivo e vermelho, a queimar eternamente dentro de mim. Um vulcão a borbulhar lava incandescente. Sinto-as com fervor e paixão. Como se estivesse no campo de batalha, soldado de infantaria, antes de começar a lutar, absolutamente certo da verdade da minha luta e do meu sacrifício. É um calor interior para o qual não encontro explicação racional.
Sei intuitivamente que somos mesmo todos iguais e que qualquer descriminação entre homens e mulheres (ou adultos e crianças ou heterossexuais e homossexuais) é simplesmente inaceitável.
É inaceitável que me tratem a mim como uma criminosa.
Só a mera Possibilidade de um dia isso poder ocorrer - é inaceitável. Estar essa descriminação consagrada por LEI num estado supostamente democrático - é inconcebível e inadmissível.
Só de pensar nisso sinto asco.
Se eu não aceito isto para mim - não aceito também para nenhuma outra mulher à face do planeta.
O que gostaria também, e muito, de saber é se as filhas ou irmãs ou mães dos defensores do não fizessem um aborto - se as denunciariam.
Porque deviam. Vivam plenamente os vossos ideais. Na prática. É errado? Denunciem. Ponham as vossas filhas e esposas e irmãs e as vossas mães na cadeia.
Ai já não vão para a cadeia porque os juízes são "compreensíveis"?
Não importa, o que importa é a humilhação pública de passar por um julgamento como Ré.
Exijo que o façam. Vivam dentro e com orgulho dos vossos romantismos abstractos.
Mas o português não é assim. Diz uma coisa, pensa outra e age de uma terceira. Ou não age de todo - que também é uma forma de acção. Passiva. Escolher não agir já é uma escolha activa de um tipo de acção.
Aparentemente o sol de Portugal é em peixes.
Peixes: dois peixes a nadarem em direcção contrária.
O signo ambivalente, ilusório. Nativos a viverem o aspecto sombrio deste signo podem ser ilusionistas, mentirosos, hipócritas. Têm a capacidade de iludirem os outros e de se auto-iludirem.
Como isto descreve tão bem certas características dos cidadãos portugueses. Penso que somos campeões no auto-engano, na auto-ilusão, e ó, vai tudo correr bem desde que não façamos Nada. E já agora quantos defensores do não já não fizeram o que agora impedem os outros de fazer?
Hipócritas.
Há em Portugal uma mistura de hipocrisia, auto-engano, um lado sonhador romântico não alicerçado na realidade, em factos, e um grande conservadorismo machista que nos liga ao passado como as raízes de uma árvore morta a ligam ainda à terra.
Ah, vamos continuar como estamos que a lei como está está bem assim. Pois.
AS MULHERES QUE CONTINUEM A SER OBRIGADAS A AGIR COMO CRIMINOSAS.
Não há um guantanamo livre nem nada para as crápulas...? Olha que era bom negócio, sim senhor. O Sócrates que veja isso. Uma prisão SA e tal. Pás pu, pás gajas.
É uma lei que faz das mulheres (QUE SÃO POBRES) criminosas.
É uma lei que faz com que, por medo, as mulheres continuam a MORRER E A TER SEQUELAS FÍSICAS E PSICOLÓGICAS por terem recorrido ao aborto clandestino.
Que as pu, que as gajas continuem a mentir quando vão, à última, para as urgências:
- Não, senhor doutor, não foi um aborto.
Como é que se pode achar sensato que a lei trate em certas circunstâncias a mulher como um ser inferior?
É nosso destino permanecer Caladas quando sofremos? É nosso fado continuarmos Invisíveis quando sofremos?
Ninguém me faz invisível ou me cala. Ninguém.
O Português é pequeno e mesquinho, a viver dentro da sua concha familiar (Portugal tem ascendente em caranguejo), apenas preocupado com o seu pequeno mundo e aqueles que ama - o resto que se lixe. As filhas dos Outros que morram ou fiquem doentes ou fiquem estéreis; as mães dos Outros que sejam julgadas. Devem ser todas umas putas. Andaram no trolaró e agora é que se queixam. Engravida quem quer.
Mas se o azar lhe bate à porta, a este português, é apenas isso - azar. Não é culpa de ninguém, foi um azar e o azar resolve-se. Epá, acontece.
Somos magníficos a projectar nos outros aquilo que não queremos encarar em nós.
Ora, para mim, as filhas dos outros são as minhas filhas; as mães dos outros são também as minhas; as irmãs dos outros têm o mesmo sangue que eu - e por todas elas eu sofro se são destratadas. E é por elas, muito mais do que por mim, que dia 11 de Fevereiro eu voto sim.
Queria explicar melhor com que intensidade eu sinto isto no coração.
Para mim a raiva que sinto equivale àquela que senti quando li a notícia de uma jovem iraniana que para se defender de uma violação matou um dos atacantes e foi presa por isso. Por se ter defendido. Sinto um ódio e uma raiva intensa ao ler notícias destas. Como aquelas que dão conta das mulheres que são violadas em países muçulmanos - e que são presas por terem tido sexo sem serem casadas.
Sinto o mesmo quando leio que homossexuais são mortos devido à sua orientação. Tenho o mesmo tipo de raiva e nojo.
Não sei qual é a fonte. E assusta-me esta intensidade porque não estou habituada a ela. Eu não sou assim - fanática e intolerante e incapaz de aceitar uma opinião contrária à minha. Mas nisto acho Impossível que sequer exista uma opinião contrária a esta.
Jamais votem em mim se um dia me der na telha candidatar-me a algum cargo político - desconfio das minhas tendências ditatoriais.
14 Janeiro '07
A omissão também é um crime. Escolher não agir já é a escolha de um tipo de acção. Se a abstenção vencer ou se o não vencer gostaria que todos os familiares de mulheres que morreram por aborto ou mulheres que ficaram com sequelas permanentes por um aborto mal praticado, ou que estas mulheres elas mesmas, fossem tirar satisfações com cada um dos votantes do não e com cada um dos que decidiu sentar o cu balofo na cadeira e zappar o domingo inteiro de canal em canal.
- Por sua culpa fiquei estéril. Parabéns.
- Por sua culpa a minha mãe morreu.
E um dia, quando o "azar" bater à porta desta malta, espero que as respectivas filhas ou irmãs façam o mesmo.
- Ó pai, vê lá, se tu tivesses votado...
Quanto a julgamentos morais - isso fica com a consciência de cada um. Matou, não matou, não interessa. Cada um que se julgue a si próprio. Não se pode é coarctar a liberdade dos outros. Sejamos adultos e aceitemos plenamente as consequências dos nossos actos e decisões.
Já estou tão farta desta porra. Deste país de machismos, onde as próprias mulheres são parvas e machistas com elas próprias.
Por entre os telemóveis de terceira geração ainda ardem as fogueiras da inquisição.
17 Janeiro
Parece-me que os votantes do não caem em duas categorias: os idealistas e os conservadores.
Os românticos têm aquela ideia de que a vida é sagrada e que ninguém tem o direito de impedir uma vida de nascer.
Vivem no reino dos ideais, no lalaland, no ó vai tudo ficar bem, vamos usar o dinheiro para ajudar as mamãs.
Vivem no abstracto em que um embrião, como possibilidade de futuro, é superior à existência real e concreta de uma mulher, um ser que já existe e que respira e que tem uma vida de facto. Aqui o imaginário, um Futuro Lindo sobrepõem-se ao real, a um Presente Concreto.
Não vos parece muito português? Esta incapacidade de olhar os factos de frente?
Os conservadores basicamente nem sequer sabem porque o são - herdaram os valores do status quo dos papás, dos tetravós. Votam não porque é Errado. Mas nem sabem porquê. Para quê estar a pensar nestas coisas quando a sociedade já o fez por nós? Eles, parece-me, não desenvolveram ainda os seus próprios valores e limitam-se, por preguiça e facilidade, a tomar como seus os valores retrógrados e pequenos dos avós. Se lhes bate o azar à porta rapidamente mandam as convicções às malvas e fazem o que deve ser feito.
Há muitos conservadores por aí que o são apenas de nome. Que nem sequer sabem aquilo que é importante para si.
Bom, devo ter ofendido uma quantidade substancial de malta e peço desculpa por isso. A sério, não estou a gozar. Eu fico passada com este assunto. Por favor continuem a visitar este espaço e não deixem de falar comigo.
18 Janeiro
/peace out
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