sábado, janeiro 06, 2007

Casa Morta



Excertos de Fiódor Dostoiévski
- Cadernos da Casa Morta -
(Editorial Presença)

"... podem aguentar-se de uma só vez quinhentas, mil e, até, mil e quinhentas pauladas; mas, se tiverem sido sentenciadas duas mil ou três mil, a execução é dividida em duas ou três partes. Os que, depois das costas tratadas, saíam do hospital para receberem a segunda metade, nas vésperas e no dia da alta estavam habitualmente sombrios, carrancudos, calados.
(...)
quinhentas vergastadas, ou mesmo quatrocentas, bastam para poder matar um homem; mais de quinhentas significam morte certa. (...) Entretanto, é possível resistir a quinhentas pauladas sem qualquer perigo de vida.
(...)
Há pessoas que, como tigres, têm a avidez do sangue, anseiam por lambê-lo. Que experimentou uma vez tal poder, tal domínio ilimitado sobre o corpo, sobre o sangue e sobre o espírito de um ser humano, criado como ele próprio por Deus, seu irmão pela lei de Cristo; quem experimentou o poder e a absoluta possibilidade de ofender com a pior das humilhações outra criatura que traz em si a imagem de Deus - tal indivíduo deixa de ser senhor das suas sensações.
A tirania é um hábito; como tal, tem capacidade de evoluir e evolui, acabando por se tornar uma doença. Afirmo que o melhor dos homens pode ficar bruto e cretino até ao estado animalesco por força do hábito. O sangue e o poder embriagam: desenvolve-se a rigidez, a degradação; os fenómenos mais anormais tornam-se acessíveis e, por fim, doces à mente. O homem e o cidadão perecem no tirano para sempre, e o regresso à dignidade humana, ao arrependimento, ao renascimento tornam-se quase impossíveis para ele.
(...)
Numa palavra,
o direito de castigo corporal que uma pessoa tem sobre outra é uma das chagas da sociedade, e é, nela, um dos mais fortes meios de extermínio de qualquer germe, de qualquer tentativa de civismo, é a base da sua inevitável corrupção.
(...)
Havia um certo contentamento, inclusive, quando traziam os malucos [ao hospital], para verificação da loucura. A manha de fingir a loucura para fugir do castigo era uma das muitas a que recorriam os condenados.
(...)
Ora, os verdadeiros loucos trazidos para verificação constituíam um verdadeiro castigo para a enfermaria. No início, os presos recebiam alguns deles - eufóricos, cheios de animação, gritando, cantando, dançando - quase com entusiasmo. «Ena, até tem piada!» - diziam, olhando para as partes gagas do doente. Quanto a mim, era-me penoso ver aqueles desgraçados. Nunca pude olhar com sangue-frio para os malucos.
(...)
em dois ou três dias, faziam perder a paciência a toda a gente. Um louco ficou connosco três semanas e só nos apetecia, a todos, fugir."

Podia pôr aqui excertos do livro todo. Um relato em primeira mão do que é ser condenado ao exílio e aos trabalhos forçados na Sibéria (entre 1850-54).

Um século e meio separa-nos e no entanto o texto é tão estranho quanto real. Vale a pena ler, se gostam deste tipo de leitura. Certas passagens tocaram-me fundo, como a descrição dos animais prisionais, mas, sobretudo, o capítulo 4 da Segunda Parte: O marido de Akulka.
Já devia ter devolvido o livro à biblioteca. Fui lenta, mais por culpa minha do que por culpa da obra. Leiam "Cadernos da Casa Morta". Vale a pena.


(Negritos meus.)

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