terça-feira, janeiro 09, 2007

Casa Morta



F. Dostoiévski
- Cadernos da Casa Morta -



"Lembro-me de mais um louco estranho. Uma vez, no Verão, chegou um acusado, rapaz aparentemente saudável e muito desajeitado, de cerca de quarenta e cinco anos, com a cara desfigurada pela varíola, uns olhinhos vermelhos balofos e um ar extremamente sombrio. Deram-lhe a cama ao meu lado. Era muito sossegado, não falava com ninguém, sempre sentado, como se estivesse a matutar sempre em qualquer coisa. O dia começava a escurecer quando ele se dirigiu a mim. Sem preliminares, mas com ar de quem me revelava um grande segredo, começou por me contar que, nos dias próximos, deveria receber duas mil pauladas, mas que tal não ia acontecer porque a filha do Coronel G... estava a interceder por ele. Olhei para ele com perplexidade e observei-lhe que, na minha opinião, num caso desses a filha do coronel não poderia fazer nada. Eu

ainda não estava a compreender a situação, uma vez que o homem não fora internado na qualidade de louco, mas de doente normal. Perguntei-lhe que doença era a dele. Respondeu-me que não sabia porque o tinham internado, uma vez que estava de perfeita saúde e a filha do coronel estava apaixonada por ele; que havia duas semanas que ela passava de coche em frente da prisão militar e, numa dessas passagens, como ele espreitasse pela janela gradeada, ela vira-o e apaixonara-se por ele. Desde então, sob vários pretextos, fora três vezes à prisão: da primeira vez fora com o pai, a pretexto de ver o irmão, que era lá oficial de guarda; da segunda vez fora com a mãe, distribuir esmolas, e quando passou por ele sussurrou-lhe que o amava e que o salvaria. Era curioso ouvir com que finos pormenores o homem me contava todo esse absurdo, criado,

obviamente, pela sua cabeça desarranjada. Acreditava religiosamente que se livraria do castigo. Falava calma e positivamente do amor apaixonado da menina e, apesar do absurdo geral da narração, era espantoso ouvir semelhante história romântica de uma menina apaixonada por um homem de quase cinquenta anos, de cara tristonha, esquisita e feia. O que o medo do castigo fez naquela alma tímida! Se calhar, viu mesmo alguém pela janela, e a loucura que amadurecia nele por causa do medo, crescendo a cada hora que passava, encontrou de repente a sua forma. Aquele pobre soldado, que talvez nunca tenha pensado em meninas durante toda a sua vida, inventou de súbito todo um romance, agarrando-se instintivamente àquela palha. Ouvi-o em silêncio e contei aos outros presos. Porém, quando os outros começaram a mostrar curiosidade junto dele, calou-se pudicamente. No dia seguinte o doutor sondou-o demoradamente e, como o paciente lhe dissesse que não se queixava de nada, o

que correspondia aos resultados do exame, foi-lhe dada alta. Ficámos a saber que lhe escreveram na ficha sanat só depois de os doutores terem saído da enfermaria, pelo que já não foi possível que nós os informássemos do que se passava. De resto, nós próprios não percebíamos bem o que se passava. No entanto, a causa de todo aquele imbróglio fora um erro dos chefes, que o tinham mandado para o hospital sem especificarem porquê. Foi um descuido. Ou, talvez, os próprios chefes apenas desconfiassem da sua loucura, sem terem qualquer certeza, sendo levados a agir por causa de rumores vagos e pretendendo que lhe fosse feito o diagnóstico. Fosse como fosse, o desgraçado foi levado, passados dois dias, ao castigo. Pelos vistos, a coisa foi tão inesperada para ele que ficou extremamente abalado; não queria acreditar que ia ser castigado até ao último momento e, quando o arrastaram para o meio das filas, pôs-se a gritar: «Socorro!» Dessa vez, colocaram-no noutra enfermaria do hospital, pois não havia camas vagas na nossa. Perguntei por ele e fiquei a saber que, durante os oito dias de internamento, o homem não dissera uma única palavra, se mostrava embaraçado e muito triste... Depois, quando as costas dele sararam, mandaram-no para qualquer lado. Pelo menos, não ouvi dizer mais nada desse preso..."

Págs. 197-8


Desgraçado do homem.
O que me leva a perguntar: quantos países ainda prendem, castigam ou matam doentes mentais...?

Fiódor, amigo, só um reparo: tu abusas nas vírgulas, pá...
Uma dieta de vírgulas fazia-te bem, camarada.

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