quarta-feira, janeiro 10, 2007

A Santa Peregrinação do Não

O Joel vai numa peregrinação a Fátima para que Jesus Cristo Nosso Senhor não permita que aquela coisa do demo vença. Aquilo do aborto, Jesus Cristo, murmura e persigna-se sem largar o cajado e com a mochila às costas.
Vai a pé, o Joel.

O Joel (dizem) nunca fez nenhum aborto. A modos que é desprovido de útero e sem útero essas coisas apresentam certas dificuldades. Mas já tentaram castrá-lo, à dentada, à porta de uma discoteca.
O porteiro falhara a medicação do haldol naquele mês. Não lhe apanhou os testículos por milagre. A quantidade de joeizinhos abortados, vejam lá, a mortandade que seria. E estar agora a pagar funerais a todos, imaginem, imaginem o dispêndio. E onde é que se fabricam caixões daquele tamanho?
Não é por isso, para agradecer o milagre divino, que está na Santa Peregrinação pelo Não. Viu o panfleto na mercearia do Bairro e achou uma bela ideia. Deus Nosso Senhor Que Morreu Pelos Nossos Pecados com certeza estaria presente para abençoar a passeata. Ou se não pudesse comparecer mandava o Espírito Santo para fazer corpo presente. Se encontrasse o caminho, é claro. O que o Joel desconhece porque é um segredo de Estado (e de Igreja) é que o Espírito Santo sai e às tantas não sabe por onde anda. Tem um problema alcoólico, mas chiu, nada de divulgar segredos deste calibre (é feio).

Bom, o Espírito Santo não chegou a aparecer na Santa Peregrinação do Não porque se enfiou numa tasca, afiambrou-se aos pevides e à pinga e foi um castigo tirá-lo de lá. O taberneiro enxotou-o, carregando com ele pelos sovacos junto com um vizinho, pondo-o na rua.
- Filho da puta... - murmurou, nada satisfeito por saber que não ia receber o dinheiro pela mercadoria gasta. O gajo dissera, com uma lata: Deus paga!
- Esse é o outro! É o JC! - replicou em tom brincalhão e mal se aguentando nas canetas.
Ziguezagueou pelas ruas até descobrir outro tasco e alapou-se a uma mesa como o mexilhão à rocha. E tirá-lo de lá? Jesus. Ninguém morria de amores pelo Espírito Santo, além de bêbado empedernindo era caloteiro.
Joel, porém, era crente. Acreditava em tudo aquela alminha. Ai, houvessem mais pontes à venda! Acreditava que o Espírito Santo, sóbrio e correcto, os acompanhava, embora num estado invisível.

E lá seguia o grupo em fila indiana.
Ele é contra o aborto porque a vida é sagrada.
"Diga NÃO! Vote NÃO! Abra o seu Coração!", recitavam os cartazes espalhados nas cidades.
Uma repórter, um bocado lixada naquele dia (o síndroma pré-menstrual pode ser do catano), só por gozo, um gozo cínico que não aliviava a tensão, mas que teria graça mais tarde, perguntou a uma popular do norte, mulher dos seus cinquenta anos:
- É contra o aborto?
- Ai sou, sim senhora. É um pecado. É um pec...
- E o desmancho? É a favor?
- Ai isso já é outra coisa. Já é outra coisa diferente.
- É a favor, então?
- Ai isso sim, isso já é diferente.
Joel lá continuou a caminhar de cajado na mão, na mente a imagem de um dos apóstolos, há dois mil anos (mais coisa, menos coisa), coitados, o que eles sofreram, sem que a consciência lhe apontasse a magnitude da arrogância na comparação. Afinal ele tinha ténis e os outros usavam sandálias.

O Espírito Santo bebia cerveja no meio da rua, roubada numa gasolineira.
A Virgem Maria servia como alternadeira para os lados da fronteira espanhola. Dava-lhe jeito a proximidade. Ao menos não tinha as merdas que existiam em Portugal. A coisa fazia-se com higiene e arranjo. O raio da pílula que ela se esquecia de tomar! Tinha de mudar para o Diu.
Deus, esse, jogava na playstation. E o JC... anda desaparecido. A judite foi alertada, mas avisaram:
- É homem de barba feita. Pode ir onde bem entender sem dar explicações a ninguém.
Puseram a foto a circular, mas foi tudo.
Eu cá parece-me que o tipo deu em budista e rapou a careca.


9 Janeiro de 2007


P.S. Conto inspirado na notícia que dá conta de uma peregrinação ao Santuário de Fátima "dedicada ao 'não' ao aborto".
Que Deus Nosso Senhor se divirta a lançar-lhes caroços de pêssegos à tola, é o meu profundo e sincero desejo. Ámen.

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