quarta-feira, julho 23, 2003

Incontornáveis



Estou a lembrar-me da “Construção “ de Chico Buarque onde o tipo faz todas as coisas pela última vez [ouvi a música com mais atenção].
Lembrei-me da música ao ler a palavra “incontornável”. Obra tal é “incontornável”, pessoa assim é “incontornável”.
Depois lembrei-me de uma ideia que tive no outro dia. A memória não é eterna. A memória finda, a memória não engana a morte. Nisto culpo um bocado algumas escassas leituras zen. Mas como se pode ignorar isto? Que nada é eterno? Um dia o sol explode e lá se vai a Terra. O pó do pó do pó da memória do pó das obras de Shakespeare seguem-na. Sabendo à partida que a única certeza é o fim (por mais longínquo que esteja) porque é que o escritor escreve, o pintor pinta, o escultor esculpe, o cantor canta? Não pode apenas, como fim último, apontar para a Memória. Se ele aponta para aí já perdeu porque absolutamente nada nos sobrevive. Ele aponta para si, talvez (penso). Ele aponta para a sua alma, exprime-se para a conhecer, compreender-se – e fá-lo publicamente. Li algures que o universo se dividiu em partículas minúsculas de maneira a poder analisar-se melhor. Se o artista apontasse para a Memória (que é finita) estaria a apontar para o “incontornável” (que ninguém no fim de contas é), estaria a apontar para o efémero, estaria a apontar para (aiming at) fora de si. E fora de si não há arte possível porque se elimina a expressão individual.


Não há incontornáveis, não há permanências eternas; eterno por enquanto só é o presente. À maneira zen devíamos fazer as coisas como se fosse a primeira vez que as fizéssemos (analisando a questão, no momento em que as fazemos até é a primeira vez). O fim é inevitável – morrer na contramão a atrapalhar o trânsito (metaforicamente, claro).

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