quarta-feira, julho 09, 2003

Um conto que escrevi há muito tempo, na época em que participava no Dn Jovem.
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CARGA D’OSSOS


Falar com bonecas de porcelana não é tão difícil como parece. As bonecas de porcelana são dóceis, mansas, não mordem nem arranham como feras enjauladas ou políticos catapultados do governo para a oposição. Elas têm olhos grandes e expressivos, pestanas encaracoladas e sobrancelhas finas, delineadas com cuidadoso rigor na testa de marfim rosado. Sorriem como Mona Lisa. São lindas, prestáveis e sabem contar histórias. Se Deus inventou o homem, segundo uma crença judaica, porque gostava de ouvir histórias, o homem inventou as bonecas de porcelana.
Tenho várias. Todas me distraem com gracejos, contos e máximas. A minha preferida, no entanto, é a de cabelos anelados de cor de avelã. A Suzy. Quando lhe tapo os olhos e depois retiro a mão, as lagoas negras do centro diminuem até se sintonizarem com a luz ambiente. Uma das histórias que me contou foi a de um rapaz, apaixonado por uma rapariguinha feia e magrela. Carga d’Ossos, chamavam-lhe. Ora era costume no local onde viviam comprar a noiva ao pai por um tanto número de vacas. A média andava nas três vacas, sendo as mais feias trocadas por uma e as top models do sítio atingiam o número astronómico de cinco vacas. Quando iam ao mercado as mulheres, vaidosamente, trocavam informação recíproca do número bovino que o pai recebera em troca da sua cedência.
«Três vacas», dizia uma. «Quatro vacas», adiantava outra. «Duas vacas», sussurrava alguém. Esta recebia logo olhares de desprezo das suas congéneres.
O rapaz apaixonado não queria que a sua Carga d’Ossos recebesse quotidianamente semelhante humilhação. Por isso trabalhou, poupou, mourejou e certo dia, num pôr-de-sol belíssimo em que o astro-rei dourava as núvens que o encobriam, coando-lhe os raios (Deus é um tremendo artista), pôs-se a caminho da casa da amada. O pai dela recebeu-o espantado. Atrás dele alinhavam-se sete reluzentes vacas. O rapaz pediu-lhe a filha em troca, pedido prontamente aceite pelo pai, apesar de no íntimo julgar que o rapaz não devia bater bem da bola. Afinal sempre pensara que, mesmo oferecendo as vacas que era suposto receber, jamais conseguiria encontrar um marido para a filha. Enganara-se, está visto. Carga d’Ossos não compreendeu o gesto, mas a incompreensão reforçou-lhe o sentimento de gratidão profunda que lhe brotava do peito, como uma flor que via pela primeira vez a cor do céu.
Casaram. Suzy disse-me que aquele obrigado imenso, puro, cristalino desabrochou noutra coisa, nalgo que vive e morre todos os dias, como o sol, que renasce depois da noite e hiberna no coração dos homens enquanto eles dormem. «Acho que vocês chamam a isso amor.»
Um ano depois Carga d’Ossos era considerada, por mérito próprio e não devido à oferta de sete vacas (apesar de sete vacas comprarem muito respeito), a mulher mais bela das que se iam abastecer ao mercado.
«Quem te contou essa história? Foi outra das bonecas de porcelana? A Donnyazade?», perguntei-lhe.
«Não. Li no Reader’s Digest.»

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