DA SÉRIE DE PREVISÕES QUE EU AGORA VOU FAZER
Ou
A REVOLUÇÃO
Era uma vez um mundo assim muito mundo como o nosso mundinho, à deriva no céu estrelado. Nesse mundo Tudo era outsourcing e os ordenados pagos eram de merda. Mas a malta não se revoltava porque ainda havia tv de sinal livre e o apagão analógico ainda não tinha acontecido. Pagavam-se ordenados de merda porque as Empresas não queriam despesas com quem lhes dava o comer para a boca. Mas um dia foi giro (foi bonito) e os combustíveis aumentaram dez vezes mais, a comida outro tanto e de repente dois ordenados numa casa ainda davam para pagar a renda (vá lá), mas para comida é mentira, nem vê-la, se quiseres vai aos caixotes do lixo e não refiles.
De repente toda a gente se revolucionou.
Eu, por exemplo, quando saía de casa não me despedia com um:
- Vou trabalhar, até logo.
Antes dizia:
- Até logo, vou para a Revolução.
Andava toda a gente a revolucionar-se nesses dias. Eu, por exemplo, ia para o trabalho (o Metro funcionava mal por isso tinha que ir a pé uma data de estações), no meio de piquetes por tudo e mais alguma coisa (a meio da estrada, juro, faziam-se piqueniques e churrascadas, os automóveis – capitalistas! - nem podiam passar, praticamente estava cerrada ao trânsito automóvel, excepto transportes públicos – que funcionavam mal por causa das greves), ia eu, dizia, abrindo caminho quase à cotovelada, indo com a minha malinha e outra, maior, com o almoço no termo (bruxo!), e, graças a muitos e continuados esforços, lá chegava ao Call-Center.
Mas ninguém me deixava trabalhar.
E eu queria (a sério, queria. Só se recebe dessa maneira, não é?). Os colegas chamavam-me uma data de nomes, subindo eu as escadas (Capitalista! Exploradora! Opressora! - coisa que não era de todo), mas eu, valente, prosseguia. Lá em cima os supervisores (ou team-leaders ou chefes ou o raio que os parta, os nomes mudam, mas...) também não me deixavam trabalhar! (Foda-se, é tudo a a ajudar, pensava eu.) É que os supervisores, que de início se amedrontaram que nem cães, logo depois, vendo que a Revolução era Geral, decidiram juntar-se a ela: mas ficavam mesmo no seu local de trabalho, conversando com outros chefes ou “Middle Management”, bebendo café e até fumando (agora fumava-se em todo o lado, pó caralho com as proibições, dizia-se abertamente, e essa foi a primeira coisa a ir pelo cano abaixo), tendo conversas menores (ou sobre a Revolução) e aborrecendo-se muito ao fim de uma hora disto (porque não havia trabalho, foda-se, para fazer, haver havia, mas ai deles se o fizessem – capitalistas! Opressores!). Estes não se atreviam a descer e juntar-se às maralhas Revolucionárias comuns.
De modo que eu, ao fim de alguns minutos (que iam encurtando com o tempo) a tentar convencê-los inutilmente a deixarem-me ocupar o meu posto, voltava a descer, de orelha murcha, e juntava-me (francamente aliviada, confesso) aos meus colegas Revolucionários que me saudavam assim:
-Olha a capitalista! Já cá estás, é? - mas era uma saudação doce e sorridente, sem vestígios de malícia ou ressentimento. Eu encolhia os ombros, apertava os lábios, alteava as sobrancelhas e levantava as mãos.
-Venho para a Revolução – contestava e sentava-me num degrau perto, descansava do peso das malas e punha-me a observar com olho clínico toda aquela malta a Revolucionar.
Invariavelmente ficávamos todos (à porta do edifício onde trabalhávamos) até à nossa hora oficial de saída: quem saía às 16h, partia a essa hora; quem saía às 18h ia-se embora nesse horário. Ou seja, passávamos ali o nosso horário de trabalho – só que a Revolucionar (mas tudo muito pacífico, muito pacífico).
Falava-se muito. Havia quem se queixasse que era pena não ser a época da sardinha – mas havia sempre comida com fartura. Os Empreendedores abriam uma banquinha e fartavam-se de arrecadar – até à altura em que alguém se lembrou de chamar capitalista a um e foi o bom e o bonito. A partir de então os Empreendedores não sabiam bem se lhes pagavam a comida ou se simplesmente a malta decidia servir-se à vontade. Era uma mescla das duas possibilidades – e era bom que os Empreendedores não abrissem o pio para reclamar (Opressores da Classe Explorada!).
Isto durou muito tempo, a Revolução.
Graças a Deus os meus pais tinham horta – senão bem tramada estava. Muito caldo verde durante a Época Revolucionária! papei eu...
(16.07.09)
(c. de 750 palavras)
Sem comentários:
Enviar um comentário