- II -
9 DE PAUS / LOUCO
O nove de paus é defensivo, desconfiado, sempre a postos.
Há um homem frente a uma fiada de paus levantados ao alto como uma muralha. O Louco aproximou-se dele e ficou a olhar com ar inocente durante um longo período para aquela estranha construção defensiva que parecia quebrar a harmonia intrínseca da paisagem. Como uma enorme borbulha espinhosa no meio da terra.
Ele tinha de a atravessar. Seguramente algo melhor, algo incrivelmente maravilhoso estaria por detrás daqueles paus longos. Tudo o que é defendido é-o por ser valioso (pensa o Louco na sua ingenuidade de criança).
O Louco aproxima-se do homem mais velho e curvado, apoiado num pau (como se o trabalho de eternamente defender-se o cansasse), quase aos pinotes, exibindo confiança e um grande sorriso. De imediato o homem assume posição de ataque e avança contra ele. Atemorizado, o Louco recua e pergunta:
- O que fazes? Eu só quero passar.
- Ninguém passa! Ninguém passa daqui adiante!
- Porquê?
- Porque não! Eu pus esta barreira! Daqui para diante são as minhas terras! Só queres roubar o fruto do meu trabalho.
- Não - defende-se o Louco. - Não te quero tirar nada. Só quero passar, viajar, ver o que está mais além.
- Além estão as minhas terras, não passas! - disse e avançou um passo furioso.
De repente sente uma mordidela na perna e grita de dor. Era o pequeno cão branco do Louco (que lhe perdera o faro, mas voltara a recuperar o odor), a ferrar o dente. O homem virou a atenção para o canito, tentando sem sucesso acertar-lhe com o pau. O cãozito era demasiado ágil. Entretanto o Louco aproveitou a confusão para abrir uma brecha na muralha de postes e pisgou-se para o outro lado, certo de que havia maravilhas à sua espera.
Quando o cão parou de dançar aos pés do homem (não lhe acertou nem uma vez), já o intruso ia longe. O homem viu a brecha no muro e caiu de joelhos a chorar. Ficou ali por muito tempo com o pau tombado, a penar de angústia, pensando que todas as suas precauções não tinham levado a nada e fora um canito, quase uma formiga, o causador daquela grande desgraça, um enorme buraco na muralha! Que grande buraco! Qualquer um podia passar por ali e roubar-lhe tudo. Tudo! Ficou bastante tempo a lamentar-se, o pobre homem, até que decidiu erguer-se e refazer o muro: em cimento. Mas ele não sabia que os muros, quando têm de cair, nem se forem feitos de titânio ou diamante se aguentam de pé (e às vezes as melhores muralhas são as de ar).
O Louco já ia bastante avançado, com o canito sempre atrás, a bailar-lhe entre os pés, a dizer-lhe em linguagem canina: por favor, volta para trás, o mundo é perigoso, tu tens tudo em casa, não é preciso aventurares-te, o mundo não se importa conosco nem nos receberá de braços abertos. Devias ter lido mais livros, diz o cão (em linguagem de cão que o Louco não compreende), ias ser menos ingénuo. Ou se calhar, pensa ele um bocadinho, não devias ter lido livro nenhum.
O Louco colheu uma maçã e uma pêra das árvores, partilhou uvas da videira com o canito branco (que as comeu com gosto) e dormiu sob as estrelas. O Louco ele próprio tinha um pau, mas nem lhe passou pela cabeça usá-lo para a violência. Na ponta há um lenço vermelho atado: uma pequena trouxa para levar o essencial. Mas ele esquece-se de a encher. Quando saiu pôs duas bolachas. Só as encontrou dois dias mais tarde e deu-as ao cão. Não tinha fome. As vistas, as novas paisagens enchiam-lhe os olhos de maravilhas e, parecia, também a barriga. Á noite, já ele estava bem adormecido, o canito apanhou alguns frutos que cairam no chão e colocou-os, com imensa mestria, dentro da trouxa vermelha. De manhã o Louco sentiu um peso ligeiro, mas não se importou. Havia ainda tanta coisa por descobrir! Seguramente outro passo era uma promessa, um abismo cheio de promessas!
RAINHA DE PENTACLOS / MÁGICO
O Mágico ia no trilho do Louco. Encontrou a Rainha de Pentaclos no caminho. Tinha seguido inicialmente, por meio dos seus olhos mágicos, as invisíveis pegadas do Louco que mal se viam, e depois as do canito, que eram mais aparentes. Infelizmente o cão branco, seguindo apenas a lógica, perdia-se demasiado, enquanto que o Louco, seguindo o vento e as nuvens, não se perdia nunca: estava sempre onde devia estar. Onde quer que estivesse - esse era o caminho certo.
No trilho encontrou uma bela mulher, ricamente vestida de ouro. Apesar de bela pareceu-lhe um pouco dura. Ou melhor: demasiado prática. Notou o quanto o ouro brilhava. Ela esfregava-o todas as noites. Gostava muito daquele ouro. Dera-lhe trabalho adquiri-lo. Agora contava as azeitonas da oliveira: antes de vendê-las tinha de ter a certeza do seu número exacto Uma parte venderia e a outra era para fazer azeite. Ela gostava muito de azeite. Sentia-se feliz enquanto mirava cada azeitona. Mal viu o Mágico. Quando ele a abordou ela sobressaltou-se:
- Esse, porque quem demandas, como é?
- O Louco? - o Mágico reflectiu um pouco. - É uma criança grande, como se nunca tivesse crescido. Hás-de notar: tem sempre um sorriso na cara e pensa que tudo e todos são extraordinários. Mas não fica muito tempo num lugar.
Ela pensou:
- Sim, julgo que o vi. Há alguns dias atrás - finalizou com o dedo da unha bem cuidada a tocar no queixo e os olhos alçados para o ar.
- Por onde foi?
- Quanto vale para ti essa informação?
"Ah, uma mulher de negócios."
Chegaram a acordo. De dentro do manto o Mago tirou um saquinho de sementes e uma moeda de ouro. A Rainha de Pentaclos indicou-lhe o caminho seguido pelo Louco com o queixo: um caminho estreito entre duas montanhas próximas, com risco de derrocada a cada passo. A Rainha de Pentaclos sorria satisfeita. Guardou as sementes dentro do vestido e a moeda pô-la na bolsa atada à cintura.
(22/7/09)
(c. de 1040 palavras)
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