segunda-feira, abril 25, 2005

Cap. 5 d'A Imortalidade

Não consigo encontrar a casa. Percorri o atalho de fio a pavio várias vezes e nada. Começo seriamente a duvidar da minha saúde mental e num flash repentino vejo a minha tia-avó esquizofrénica que passou a maior parte dos seus dias no Júlio de Matos, passeando nos jardins, falando sozinha, sem conhecer outro mundo que não aquele.
Considero mesmo a remota hipótese de se tratar de um trauma neurológico. Bati com a testa em algum lugar? Caí da cama? Sou incapaz de recordá-lo.
De repente penso no ridículo dos meus pensamentos e ponho cobro àquilo. Já perdi demasiado tempo com este assunto. Decido ir enfim à mercearia fazer as compras em falta desde ontem. A sensação de alívio que me banha o interior das veias espanta-me.
- Boa tarde.
- Boa tarde.
- Tem solha?
- Não neste momento, não temos. Temos é ali um bacalhauzinho muito bom.
- Hum, pode ser. Eu levo.
Enquanto o pesa e corta vou pondo no balcão os mantimentos de que necessito: natas, azeite, cebolas, alho, batatas, arroz, pescada e hambúrgueres congelados, ovos, bolachas, uvas, laranjas. Não levo mais nada porque não posso com o peso. Imaginar o bacalhau com natas, pronto a sair do forno, faz-me aguar a boca de antecipado prazer.
Pago e saio.
Distraio-me com imagens deliciosas da preparação do prato, considerações acerca dos gostos culinários do meu marido (talvez lhe faça o tiramisú que tanto aprecia) quando os sacos de compras quase escorregam das minhas mãos e fico de boca aberta, estupefacta, a olhar o edifício perdido, ou quiçá invisível, de há pouco.
Subitamente estou de novo à porta da casa mistério, como se engolida por um universo paralelo ou vítima de um passo mal dado que me plantou nas divagações oníricas de outro humano.
Um ligeiro estremecer no estômago, acompanhado por uma não tão ligeira raiva, fazem-me entrar de rompante na casa. A porta estava totalmente aberta.
Avanço, os sacos a baterem-me nas pernas velozes, ignorando os livros, o meu primeiro prazer (o segundo é a comida) e dirijo-me com ganas para o túnel quando reparo no quadro.
À luz do dia as nítidas figuras antigas retêm o meu fôlego com a força de um lenço a esmagar-me a traqueia. Aproximo-me.
A mancha azul vinha do longo vestido de noite que a jovem mulher loira envergava. O seu olhar azul continha traços de uma ingenuidade treinada e uma inquestionável crueza. O rapaz ao seu lado, de pé, devia ter cerca de nove anos, e usava um fato de marinheiro. Na mão direita segurava um comboio de brinquedo. O olhar apático traía a sonolência, prova de ter sido obrigado a posar para o retrato. À época a fotografia era comum. Mas ele provinha de famílias ricas que sempre se retrataram do mesmo modo, adivinho. O choque foi ver na rapariga representada o rosto da jovem prisioneira que eu vim libertar. O mesmo rosto.
Os mesmos traços.
Os mesmos olhos.
A mesma pessoa?! Impossível!
E a mancha no pescoço do rapaz. Já a tinha visto antes.
Procurei por instantes, confusa, na mente a chave do reconhecimento, a decifração do enigma do local ou, se possível, da pessoa, até que num relâmpago repentino a memória dissipou a sombra que a velava e vi claramente o rosto do homem a quem, agora, a mancha pertence.
Corri para a porta ao lado do quadro. Precisei novamente da pequena lanterna do chaveiro. A estátua permanecia na mesma posição e eu estaquei: um pavor subterrâneo subia-me das raízes para o rosto.
Apontei o foco de luz à face marmorizada e desviei as roupas para o lado, pondo totalmente a descoberto o pescoço.
Abafei um frémito perturbado. Depois comecei a respirar em pequenos e rápidos assopros.
A pequena mancha, mal discernível por entre a roupa, revelou ser idêntica à do quadro. Duvidei tratar-se de um sinal partilhado pela família.
Mas já não duvidava do que vivi. Já não duvidava da minha sanidade nem do facto concreto de ter visto a bela face da jovem desconhecida transformar-se numa carranca monstruosa.

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